. Ele quer matar a inflação. A qualquer custo
Se a ampla maioria dos analistas, das mais variadas tendências, entende que a taxa básica de juros já poderia ter sido reduzida, por que o Banco Central a mantém no nível elevadíssimo de 19,75% ao ano, conforme foi decidido na reunião de agosto do Comitê de Política Monetária (Copom)? Há algumas respostas e especulações, mas todas claramente insuficientes, mesmo porque a reunião ocorreu antes das novas denúncias envolvendo o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Diz-se, por exemplo, que os juros não caem porque o Copom é muito conservador. Tudo bem, mas por que seria tão conservador? Na verdade, só há uma explicação possível para se entender essa cerrada e duradoura austeridade: o BC deve ter tomado a decisão de liquidar de vez a inflação brasileira, qualquer que seja o custo.
Mas, de novo pode-se perguntar, o Plano Real já não deu conta da inflação?
Sim e não. Sim, porque livrou o país da superinflação crônica e indexada. Não, porque o nível médio de inflação, mesmo nos bons momentos, tem ficado acima do que se verifica nos países emergentes mais importantes. Nestes, qualquer número acima de 5% ao ano é ruim. E a média permanece nos 3%.
Já no Brasil, desde a mudança para o regime de câmbio flutuante, em 1999, a inflação nunca ficou abaixo dos 5%. A média nos últimos seis anos foi de 8,6%, tendo chegado a dois dígitos em 2002 (com perigosos 12,5%), sempre conforme o IPCA, índice de preços ao consumidor do IBGE, referência do BC.
Portanto, há um problema aí. Debelar a inflação é sempre um processo custoso para a sociedade. O remédio é a elevação da taxa de juros, o que desestimula investimentos e consumo e, assim, esfria a atividade econômica. Se as pessoas não estão comprando, como elevar preços? Não raro, os juros muito altos causam recessão ? uma queda na produção nacional ? e sempre provocam desemprego e perda de renda. Em poucas palavras, empobrecem o país, as pessoas e as empresas.
Ocorre, porém, que o BC elevou a taxa básica de juros por nove meses seguidos, de 16% em setembro do ano passado para 19,75% em maio último. E a manteve nesse nível nas três últimas reuniões.
E não há recessão no país. Ao contrário, houve bom crescimento no ano passado, uma clara desaceleração no segundo semestre de 2004 e primeiro trimestre de 2005, mas com a economia se mantendo em expansão. E todos os sinais sugerem que o segundo trimestre deste ano foi bem melhor que o primeiro. É muito possível que o país cresça 3% neste ano, depois dos 4,9% de 2004, números certamente bons num período de combate à inflação.
Parte substancial dessa expansão decorre do bom resultado do comércio externo, com as exportações crescendo mesmo com o dólar barato. Em circunstâncias normais, a moeda nacional valorizada ajuda a derrubar preços, mas também aumenta o déficit comercial na medida em que encarece o produto nacional e barateia o importado, como aconteceu no lançamento do Plano Real.
As circunstâncias do momento, entretanto, são anormais, no bom sentido. A economia mundial passa por um período de forte crescimento ? e isso em todas as regiões, o que é muito raro. Em consequência, há uma expansão recorde do comércio mundial, isso provocando alta de preços internacionais de diversos produtos brasileiros, como as comodities. Além disso, parece que empresas brasileiras exportadoras se beneficiam hoje de ganhos de competitividade construídos ao longo de anos de modernização.
Assim, mesmo com o real valorizado, as exportações crescem e puxam a economia local.
Tudo considerado, o BC tem diante de si uma situação favorável para usar o poderoso e amargo remédio dos juros altos e do dólar barato para aniquilar a inflação, sem que isso jogue a economia no chão e destrua o comércio externo. Acrescente-se a isso a situação institucional também rara, de um governo de esquerda concedendo, na prática, autonomia ao Banco Central. Só pode ser isso: o pessoal do Copom deve ter visto a oportunidade única de jogar a inflação brasileira abaixo dos 5% anuais, e de modo consistente, com custos toleráveis econômica e politicamente.
Há dois argumentos técnicos e circunstancias para explicar a última decisão do Copom de manter os juros em 19,75%. O primeiro e mais importante tem a ver com a ata do preço internacional do petróleo. Parece que a Petrobrás não tem mais como evitar um novo aumento na gasolina e no diesel (já aumentou o gás) ? e assim acrescentar alguns centésimos na taxa de inflação. O segundo ponto mais observado pelos analistas é a crise política. Na instabilidade, os investidores compram dólares, o que eleva a cotação da moeda americana ? e o dólar barato tem sido âncora dos preços. Uma combinação de gasolina e dólar mais caros produziria estragos.
Ocorre, diz a maioria dos analistas, que a alta dos combustíveis pode ser acomodada. Quanto à crise política, é preciso notar, de novo, que o BC tomou sua decisão de manter os juros antes de se conhecerem as novas denúncias envolvendo Palocci. E o fato é que até então a cotação do dólar não se abalara desde a eclosão das primeiras denúncias. E o BC não poderia prever que o chefe Palocci entraria no olho do furacão, isso, sim, um fator de instabilidade.
Tudo considerado ? incluindo a queda forte todos os índices de inflação – havia sobra de motivos técnicos para o BC começar a reduzir juros em agosto. Se não o fez, só pode ser porque esperava o momento mais ideal, aquele em que a inflação estivesse no chão, sem chance de se levantar. Dando certo o plano do BC, os juros passariam a ser reduzidos em setembro ou mesmo um pouco adiante, mas em um processo consistente, de vários meses. Mantido o bom cenário internacional e dados os bons fundamentos locais, apostava-se em um belo 2006, de crescimento maior com inflação totalmente neutralizada.
Mas como toda aposta, tinha riscos. Um deles, o risco denúncias, se materializou. O tamanho do estrago, porém, ainda depende do desenvolvimento da situação. Publicado na revista Exame, edição 850, data de capa 31/agosto/2005