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Tudo que é social é permitido
A propriedade da terra está garantida, mas apenas se essa terra cumprir sua função social. Essa é a interpretação não apenas do MST. Aderem a ela amplos setores das esquerdas nacionais e internacionais.
Também um grande número de juízes brasileiros entende que as suas sentenças não precisam, ou melhor, não devem respeitar as leis e os contratos quando estes não estiverem cumprindo sua função social.
E há um amplo entendimento segundo o qual o gasto público não deve sofrer limites quando se destina a programas sociais. O presidente Lula declara perseguir o maior programa social da história e vem aumentando as despesas nessa direção. Aliás, não são despesas, mas investimento no homem, explica o presidente. De seu lado, o Congresso Nacional também não economiza quando se trata de gastos sociais. Ainda na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou série de medidas nas áreas de previdência, assistência social e distribuição de renda mínima que podem espetar uma conta de mais de R$ 20 bilhões/ano em orçamentos da União, Estados e Municípios. Tudo se passa como se a boa intenção dispensasse a avaliação dos programas sociais. De custos, então, é um pecado falar. Como se pode falar em dinheiro quando se trata de matar a fome dos pobres? Tudo considerado, é como se a função social do gasto o torne grátis. Assim como a função social justifica restrições ao direito de propriedade e aos direitos individuais de um modo geral. Não é questão nova, nem brasileira, é claro. Há mais de 50 anos os alemães inventaram a ?economia social de mercado?, com o objetivo, a esperança, talvez, de combinar a eficiência do capitalismo com justiça social. A idéia só faz sentido quando se admite previamente que o capitalismo leva necessariamente à injustiça. Qual injustiça? As primeiras críticas, de Marx, inclusive, diziam que o capitalismo (mercado livre e propriedade privada) criava uns poucos ricos e uma multidão de miseráveis. Correu a história e se verificou que o capitalismo era, na verdade, uma extraordinária máquina de gerar riquezas e, mais importante, de incluir cada vez mais gente na produção e na propriedade das mercadorias e serviços gerados. Com o tempo, isso se tornou visível a olho nu. Antes, o mundo se dividia entre uns poucos ricos, os nobres, e o resto de pobres. Com o capitalismo, surgiram a classe operária e as classes médias, todas experimentando sucessivos avanços em seu tipo de vida. E aumentou também, de muito, o número de ricos. O desastre de todos os modelos baseados na propriedade coletiva e estatal, com mercado controlado pelo Estado, apenas comprovou a superioridade do capitalismo. A crítica, daí, evoluiu para a distribuição da renda. Ou seja, o capitalismo faz aumentar a distância entre ricos e pobres. E é verdade que essa distância aumentou, indicando que os ricos se apropriaram de uma parte maior da renda gerada. Mas isso ao mesmo tempo em que melhorava a vida para todo mundo. É possível? Considere um país de dois habitantes, com renda nacional de 10 reais, cada um ganhando 5. É a perfeita igualdade. Imagine agora que esse país tenha um surto de capitalismo e que ao final de alguns anos sua renda seja de mil reais, com quatro habitantes – um ganhando 500, outro, 250, o terceiro, 150 e o mais pobre, 100. A distribuição certamente piorou, mas o mais pobre teve um ganho extraordinário. De outro lado, os mais ricos passam a ter maiores oportunidades. A criança de uma família rica vai a melhores escolas, tem computador bom em casa e por aí vai. A idéia da economia social de mercado é estabelecer leis e regras que permitam uma distribuição melhor. O caminho óbvio é o do imposto: taxa-se a renda dos ricos e, com esse dinheiro, financiam-se boas escolas públicas para os pobres, igualando ou pelo menos se aproximando as oportunidades. No geral, trata-se de corrigir as falhas do mercado com a introdução de leis e regras que têm objetivos variados, desde bloquear a formação de monopólios até distribuir renda diretamente aos mais pobres. Dito de outro modo: em nenhum lugar do mundo, hoje, o direito de propriedade é irrestrito. E mesmo nos Estados Unidos, a pátria do capitalismo liberal, há cerca de 60 agências federais que emitem coisa de 1.800 regras por ano, limitando de algum modo a atividade das empresas e das pessoas. E em praticamente todos os países do mundo, o gasto público tem aumentado ano a ano. Portanto, esqueçam isso de que o capitalismo, a globalização e o neoliberalismo destruíram o Estado, liquidaram com as nações e geram pobreza por toda parte. Os Estados nacionais estão aí e seus governantes tomam decisões que regulam a atividade econômica das mais variadas maneiras. E o mundo, como um todo, está em crescimento, ou seja, gera cada vez mais riqueza. Mas por que alguns países crescem mais e outros menos? Por que alguns conseguem enriquecer e outros se arrastam? Ficam para trás aqueles que não conseguem introduzir a economia de mercado. Também se atrasam aqueles que, com o intuito de corrigir as falhas do mercado, acabam por criar um ambiente institucional que bloqueia a própria economia de mercado e corta seu dinamismo. Ficam para trás aqueles países que ampliam de tal modo as atribuições do Estado que este se torna um obstáculo, ao tomar enorme quantidade de renda via impostos e ao gerar inflação e dívida com o excesso de gastos. Não se pode perder de vista que a base do negócio é a propriedade privada e a liberdade de empreender. E não se pode esquecer que nada é de graça, mesmo que tenha a melhor das boas intenções. Ou seja, o social não é gratuito, nem garantia de felicidade. E isso de exigir função social de tudo, da terra e dos contratos, sem que se saiba de que função se trata, gera pobreza e estagnação. Tema do próximo artigo. Publicado em O Estado de S.Paulo, 21 de março de 2005