. Mudar a geografia, à chinesa Lá está o presidente Lula, na China, para o que definiu como a grande viagem de seu governo. Lá estão com ele 400 empresários e executivos, todos animadíssimos com o enorme mercado chinês. Para eles, a viagem será efetivamente grande se conseguirem vender seus produtos e serviços. Lula espera mais. Quer dar um impulso em sua política externa, cujo objetivo, nada modesto, é mudar a geografia comercial do mundo. Mudar como? Entra aqui uma antiga tese da esquerda. O comércio mundial, diz essa tese, se dá no sentido Norte-Sul, sendo o Norte dos países ricos e o Sul dos países em desenvolvimento e pobres. Os ricos compram produtos primários a preço de banana e vendem produtos elaborados e caros, de modo que o comércio termina enriquecendo os ricos e empobrecendo os pobres. Ora, se os países em desenvolvimento se juntassem, passando a comerciar entre si e a negociar em bloco com os ricos, isso eliminaria a dominação do Norte e mudaria a geografia comercial do mundo, tal é a tese. A China está no Sul, assim como a Índia, a África do Sul, toda a América Latina, etc. É com esses países e regiões que o presidente Lula, com o ajuda entusiasmada do chanceler Celso Amorim, pretende desenvolver as relações econômicas e políticas, formando um novo eixo. Exemplo mais citado pelo governo: o Grupo dos 20, que reúne os países interessados em combater o protecionismo agrícola dos países ricos (Estados Unidos, União Européia e Japão). Os colegas de Lula, governantes dos outros países do Sul, normalmente concordam com o discurso do presidente brasileiro. E de fato se engajam em alguns projetos, como esse de combater o protecionismo dos ricos. Mas na prática, o que eles parecem querer mesmo é ampliar as vendas para os ricos. Um bom exemplo é a própria China. Vinte anos atrás, em 1985, a China exportou para os Estados Unidos a mixaria de US$ 4 bilhões. No ano passado, vendeu para os consumidores americanos nada menos que US$ 154 bilhões. Em 85, o Brasil ganhava da China no mercado americano: exportou para lá US$ 6,8 bilhões. Já no ano passado, as vendas brasileiras nos EUA, de US$ 17 bilhões, representaram pouco mais de um décimo das exportações chinesas. Não foi nenhuma idéia de gênio. Os chineses simplesmente copiaram o roteiro dos japoneses e coreanos: o mapa da mina é vender para os ricos, especialmente para os americanos, pela simples e boa razão de que eles têm dinheiro para gastar. Começam vendendo produtos primários ou industrializados de baixa elaboração, até chegar aos computadores e carros de primeira linha, estágio em que estão japoneses e coreanos. Mas os chineses já são os fabricantes de 86% das bicicletas vendidas nos EUA. E sabem o que os chineses estão comprando Brasil? Um pouco de tudo, incluindo aviões e motores, mas basicamente produtos primários. Quase a metade de tudo que exportamos para lá no ano passado é soja em grão e minério de ferro. Além disso, a China já é o terceiro principal destino das exportações brasileiras. Mas os produtos brasileiros representam apenas 1,5% das importações chinesas. Eis aí, a ironia: no comércio bilateral eles já fazem o papel de Norte e o Brasil continua no Sul. Resumindo, no ano passado, os chineses venderam para o Brasil U$ 2,7 bilhões, contra os US$ 154 bilhões para os EUA. O que acham o leitor e a leitora: estariam os chineses interessados em se juntar a Lula para mudar a geografia comercial do mundo? Na verdade, eles já a mudaram, ao entrar para o clube dos grandes jogadores do comércio internacional. E fizeram isso com os métodos tradicionais: uma firme determinação de colocar para funcionar a economia de mercado, com os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Grande parte das exportações chinesa para os EUA é de multinacionais de origem americana instaladas na China. E daí? Gera riqueza do mesmo modo. Nos anos 80, quando Brasil e México estavam quebrados nas suas contas externas, o pessoal do mercado internacional comentava: os brasileiros fizeram barulho, anunciaram uma moratória soberana (governo José Sarney, 1987), mas estão pagando direitinho; os mexicanos juram que não vão dar calote, que eles não são disso e simplesmente vão adiando os pagamentos. A China se declara socialista, independente e vai vendendo suas bicicletas para os consumidores americanos. Quanto aos demais países com os quais Lula pretende mudar a geografia comercial, nunca é demais notar que praticamente todos estão acertando acordos de livre comércio com os EUA, como, por exemplo, Peru e Colômbia, aos quais o presidente brasileiro ofereceu vaga no Mercosul, e a África do Sul. Em resumo, o presidente Lula pode tirar muitas lições de sua viagem ao Oriente. Tomara que tire as certas. Publicado em O Estado de S.Paulo, 24 de maio de 2004
O QUE SE PODE APRENDER COM A CHINA
- Post published:9 de abril de 2007
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