. O neonacional desenvolvimentismo de Lula O Instituto da Cidadania, coordenado por Luiz Inácio Lula da Silva, oferece ao debate o documento “Um outro Brasil é possível”, preparado pelos economistas da entidade, sob a coordenação de Guido Mantega. Tornou-se público na semana passada ao ser apresentado a um grupo de economistas não-petistas, mas companheiros de viagem. Considerando que Lula é o líder nas pesquisas de opinião e que a conjuntura econômica e política favorece as oposições de esquerda, resulta óbvia a importância desse texto. Estamos iniciando uma série de artigos sobre o documento, começando por uma questão mais teórica. Qual o modelo ali proposto? Não se fala em revolução, mas o texto não é propriamente contido nos seus propósitos. Trata-se de mudar tudo: a economia, a sociedade, o Estado, a Nação (assim mesmo, com maiúsculas). “Estamos propondo uma refundação do contrato social”, diz-se ali. Documentos de partidos que passaram longos períodos na oposição costumam ser assim, messiânicos. Mas a leitura deixa a impressão nítida de que Lula e seus colaboradores não encontram nada de positivo no Brasil de hoje. Na verdade, abre-se uma exceção: “a estabilidade inflacionária foi de fato a única grande conquista do atual modelo econômico”. Mas logo vem a ressalva: “com o sacrifício” do crescimento, do emprego, da solidez das finanças públicas e das contas externas. Decorre daí a lógica que percorre todo o texto: se está tudo errado com o modelo de capitalismo neoliberal globalizado, basta inverter os sinais. Atenção: não se propõe socialismo, muito menos abolir a propriedade privada. Também não se propõem coisas como “cancelar a dívida feita pela burguesia” ou outros lemas da esquerda revolucionária. Trata-se de um “novo modelo de desenvolvimento”, “uma completa mudança de rumos”. Para chegar onde? O documento rejeita a social democracia à européia e a Terceira Via, que considera uma “capitulação” ao neoliberalismo globalizado. Registra ainda que o mundo atual “não permite a reprodução integral do nacional desenvolvimentismo” praticado no período posterior à Segunda Guerra e que era então chamado de terceira via (os regimes de Nasser, Nehru, Perón, Tito, de certo modo, e, claro, de nosso Getúlio). Mas “Um outro Brasil…” sustenta que é possível e necessário recuperar elementos daquele nacional desenvolvimentismo. Quais elementos? É uma pergunta importante, entre outras coisas porque aqueles regimes foram ou ditaduras ou autoritários ou governos fortes. O documento do Instituto de Cidadania rejeita isso. Faz profissão de fé na democracia e na participação popular. Assim, sobra a parte econômica do nacional-desenvolvimentismo. Isso inclui: enorme desconfiança com o mercado; a convicção de que o mercado livre só beneficia as grandes empresas, especialmente as multinacionais, e os ricos, nacionais ou estrangeiros; a certeza de que abertura econômica internacional só serve à hegemonia dos Estados Unidos. Só pode sair daí um modelo baseado na intervenção do Estado na economia. E é o que temos. O documento diz que não haverá mais privatizações. As empresas privatizadas, especialmente no setor de infraestrutura, serão submetidas a nova regulação e a controles mais rígidos. Serão “exigidas” metas dos concessionários, os quais pagarão impostos sobre lucros extraordinários para financiar novos investimentos, estes públicos. O Estado planejará, investirá pesadamente em infraestrutura, habitação e saneamento, aumentará o gasto social, concederá mais financiamento por meio dos bancos oficiais e dirigirá o crédito dos bancos privados aos setores escolhidos pelo governo para desempenhar determinados papéis. Assim , à grande empresa multinacional caberá a “função” de trabalhar nos setores de alta tecnologia, de modo a exportar e substituir importações. Também será induzida a reinvestir internamente os seus lucros. (Não se diz como, mas isso só se faz de dois modos: ou proibindo a remessa de lucros, ou taxando de tal modo que se torne inviável). Às demais empresas caberá a função de produzir bens de consumo de massa (roupa, sapato, alimentos), sendo que este – o mercado interno popular – é o objetivo primordial da ação do Estado na direção da atividade econômica. O documento é assim mesmo. Por toda parte encontram-se essas expressões: o IDE (investimento direto estrangeiro) será “reorientado”; as empresas devem “cumprir papéis” e realizar “funções”; o Estado “induzirá”, “fixará”, etc… Ora, como é que o governo manda nas empresas em um ambiente de democracia política? Há duas maneiras: por lei e por estímulos econômicos. Por lei, por exemplo: multinacional só pode produzir roupa para exportação; tal setor fica reservado a empresa nacional de médio porte. Os estímulos econômicos são conhecidos: proteger empresas locais contra a concorrência dos importados por meio de barreiras tarifárias e não-tarifárias. Quem exportar terá crédito especial (ou isenção de impostos). Quem produzir bens populares terá toda ajuda do governo e assim por diante. O documento, claro, não esquece dos trabalhadores. Para impedir que as empresas protegidas e financiadas simplesmente aumentem suas margens de lucro, haverá mecanismos que as induzam a aumentar salários. Ou seja, o governo senta com as empresas e os trabalhadores e define o que se vai produzir, preços e salários. O Estado aumenta também o assistencialismo (renda mínima, distribuição de alimentos e remédios). O documento do Instituto de Cidadania se compromete ainda com um aumento progressivo do salário mínimo, assim como com o fornecimento de serviços subsidiados (transporte, água, luz e saneamento) aos mais pobres. Tudo considerado, dá para entender o modelo econômico proposto por “Um outro Brasil …”. O que é difícil entender é que isso seja chamado de novo. Não é. É velho e foi um modelo que fracassou ou se esgotou, aqui e em toda parte, em meio à falência financeira do Estado, à falência produtiva das estatais, à falta de dinamismo da economia privada (empresas atrasadas e improdutivas, porque protegidas), à inflação, ao isolamento internacional e à injustiça social . Muita gente ficou rica com o dinheiro público e o mercado protegido enquanto os pobres pagaram a conta da inflação e de serviços públicos deteriorados. É interessante aqui. O documento do Instituto de Cidadania descreve todas essas mesmas mazelas e as atribui ao modelo neoliberal do governo FHC que, entre outras coisas, teria destruído o Estado. Mas o que teria acontecido antes? O Estado era uma potência financeira? As estatais eram eficientes? Na verdade, a longa crise da economia brasileira é anterior, muito anterior ao modelo neoliberal e à globalização. Este foi uma tentativa de superar a crise, no que conseguiu muitos e importantes avanços. Por que agora, sob a égide de Lula, o modelo nacional desenvolvimentismo haveria de dar certo? Há um voluntarismo ingênuo em “Um outro Brasil …”, como se outras pessoas, por serem bem intencionadas e patriotas, pudessem mandar na economia e na sociedade, conduzindo todos pela enorme mão visível do Estado à justiça e ao bem estar. O mesmo voluntarismo aparece no modo como se pretende superar os problemas do endividamento externo e interno. Mas tudo isso fica para a próxima. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 25/06/2001)
O PROGRAMA ECONÔMICO DO PT
- Post published:9 de abril de 2007
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