. Quanto custa um bagre?
O fundador, presidente e dono da FedEx, Fred Smith, entusiasta da economia de mercado e da democracia, não aprovou os métodos utilizados pelo governo chinês para reformar o sistema nacional de transportes aéreos. Comentou para a revista Economist: ?eles, os chineses, removeram vilas e bairros inteiros para instalar novos aeroportos?. Não disse, mas está claro: removeram à força. Os habitantes dessas localidades não tiveram a mínima escolha, muito menos condições de protestar, nem nas ruas, nem nos tribunais.
O resultado final, entretanto, ficou muito bom. Até surpreendido, porque, como liberal, desconfia da capacidade dos governos em tomar decisões corretas, Fred Smith reconhece que o plano chinês foi perfeito ao redefinir a infra-estrutura logística do país. Todos os novos aeroportos ficaram ?nos lugares certos?.
Vai daí que a FedEx construiu uma nova e enorme base no aeroporto de Guanzu, de onde vai controlar boa parte das operações, crescentes, não apenas na China, mas em toda Ásia. As oportunidades de negócios são imensas, diz o fundador.
Poderia ter colocado parte das operações na Índia, se este país não tivesse tantos problemas de infra-estrutura. Como se sabe, o serviço da FedEx, o maior correio privado do mundo, precisa justamente de bons aeroportos, portos e boas estradas. E para dar um só exemplo, o aeroporto central de Mumbai está congestionado e sem perspectivas de expansão.
Há mais de 250 mil pessoas morando ali em volta. São invasoras, instalaram-se sem título de propriedade, construíram bairros sem qualquer planejamento urbano. Mas como tirá-las em um ambiente democrático, de respeito às leis e aos direitos individuais?
E assim, com os métodos da ditadura, a máquina chinesa de crescimento ganhou mais um poderoso investimento externo. O governo garante que as populações deslocadas foram bem reinstaladas, mas isso já é de difícil averiguação. Sem liberdade de imprensa, não há como ouvir a opinião das pessoas envolvidas.
Mas a FedEx, ainda que seu dono não aprecie os métodos, ficou satisfeita com a oportunidade e a liberdade para fazer seus negócios. Certamente vai gerar progresso e empregos.
Enquanto isso, aqui no Brasil, há hidrelétricas, estradas, portos e outras obras paralisadas ou sequer iniciadas, muitas com projetos de mais de dez anos, porque podem prejudicar a vida de populações indígenas e/ou porque podem causar danos ao meio ambiente. São obstáculos como esses que paralisam os investimentos em infra-estrutura, uma óbvia deficiência da economia brasileira. É um dos motivos pelos quais o país não consegue crescer mais que 3% ao ano. A situação chegou a tal ponto, que o próprio presidente Lula, histórico aliado dos ambientalistas, a ponto de ter colocado sua líder Marina da Silva no Ministério do Meio Ambiente, andou reclamando desses entraves. Ambientalistas e índios reclamam, porém, que a situação no Brasil é devastadora. De fato, florestas foram (e são) desmatadas. Tribos indígenas foram eliminadas ou encontram-se hoje ameaçadas de extinção. Conseguimos, portanto, chegar ao pior dos mundos. Temos mesmo tempo destruição e paralisia de novos investimentos, com todos os lados reclamando. Como se chegou a isso? A legislação ambiental foi comemorada pelos ambientalistas, assim como as leis tratando da demarcação e proteção das terras indígenas. Houve alguma oposição do pessoal do agronegócio e de outros setores, como mineradoras e hidrelétricas, mas, mais uma vez, não era politicamente correto. Quem iria ficar contra os índios e pela destruição da Amazônia, a favor dos barões da soja, da madeira ou das empreiteiras? Foi assim que deputados e senadores votaram alegremente, os governantes, os anteriores e os atuais, saudaram as novas regras. O Ministério Público se organizou e o atrasado sistema judiciário faz o resto do serviço. São infindáveis as liminares que bloqueiam obras importantes, são inúmeras as reclamações sobre obras e atividades agropecuárias consideradas irregulares. Isso tudo porque, como costuma acontecer no país, a questão não foi claramente colocada. A legislação tem pelo menos dois entraves graves. Um é a falta de definição de competências entre as instâncias federal e estaduais. Para diversos casos, fica a dúvida: quem dá a licença final, a União ou o governo do Estado? O leitor e a leitora podem imaginar quanto tempo se perde na burocracia e nos tribunais com isso. Outro ponto é a responsabilidade pessoal dos técnicos que assinam a licença ambiental. Diz a lei que serão responsabilizados civil e criminalmente se algo vier a dar errado. Ora, trata-se de um estímulo fatal ao adiamento e à suspensão de decisões. Mais importante, porém, é que não foi claramente colocada a questão dos custos. Não se fez conta, nem se disse com todas as letras que essa proteção é cara para o país e para as populações. Entre muitos outros casos, há seis hidrelétricas planejadas para os rios que correm para o Parque do Xingu e que são contestadas pelos índios. Um dos argumentos dos índios é que um dos projetos pode ameaçar os bagres, o que, para eles, inviabiliza a obra. Estão no seu direito. Mas a decisão não interessa só a eles. Há toda uma outra população cujo progresso e bem estar vai depender da oferta de energia. Sem as hidrelétricas, a energia será escassa, impedindo muitas atividades econômicas, e mais cara. É essa conta que não se faz. Se a pergunta é – os índios têm o direito a seus bagres? ? a resposta é obviamente positiva. Mas a pergunta não é essa. É outra: para a região toda, vale a pena trocar os bagres por energia escassa e cara? Ou ainda: quanto custará cada bagre? Na China, obviamente, não se faria pergunta alguma. Os administradores sequer entenderiam se alguém lhes dissesse que não poderiam fazer a hidrelétrica por causa dos bagres e de meia dúzia de índios. Não queremos isso por aqui. Mas a situação brasileira está evidentemente errada. Obras cruciais são permanentemente adiadas, legalmente, enquanto segue a destruição fora da lei. Se o objetivo disso tudo é destruir a competitividade global brasileira, não poderia ser mais perfeito. Publicado em O Estado de S. Paulo, 04 de dezembro de 2006