O DURO APRENDIZADO DO GOVERNO LULA

. Desilusão, desilusão, danço eu, dança você …. (*) Todo governo sério e novo – como o de Luís Inácio Lula da Silva, que levou muita gente, incluindo o presidente, a estrear no poder federal – começa certo de que vai fazer e acontecer. Vista de fora, a administração federal parece uma enorme possibilidade: tantos instrumentos, tanto dinheiro, tanto poder, de modo que, tal é a impressão, basta não roubar, ter boas idéias e disposição de trabalho para mudar esse país. Aí começa o dia a dia em Brasília. É um banho de desilusões, que leva a um de dois caminhos: ou o governo se recompõe, inclusive trocando ministros e muitos outros administradores, e acerta um programa realista (e lento); ou o governo se decompõe em meio a voluntarismos variados, cada núcleo tentando resolver seu pedaço. Com meros 70 dias, o governo Lula está no meio de tudo. Encaixou uma política econômica incrivelmente realista, está definindo um programa de reformas viável, mas ainda alimenta enormes ilusões do noviciado e do voluntarismo honesto. A bronca do presidente e de diversos ministros com as agências reguladoras, por exemplo, decorre dessas ilusões. O pessoal se exaspera ao verificar que não pode entrar mudando tudo nos setores (estratégicos!) de energia elétrica e telefonia. Há leis, contratos, acordos internacionais – inclusive com o FMI – e as agências com suas diretorias não demissíveis impondo limites à ação do presidente e seus ministros. Há dois tipos de governantes que se exasperam com esses limites: os mal intencionados, que querem controlar tudo para distribuir vantagens aos correligionários e amigos, e os bem intencionados, que querem mandar em tudo porque estão sinceramente convencidos de que, sendo eles gente de bem, vão fazer tudo certinho. As leis, contratos e agências independentes foram criadas justamente para proteger o Estado e a sociedade dessas duas categorias. Ambas costumam produzir desastres, com a única diferença de que aqueles deixados pelos bem intencionados são desastres éticos. Políticos da antiga gostam de apresentar aos novatos a história da tartaruga encontrada no alto de uma árvore. Tartaruga não sobe em árvore, de modo que alguém a colocou lá e por algum motivo que você não sabe. De modo que antes de retirá-la convém saber quem a colocou e por que teria feito isso. Os novos governantes verificam que as tarifas de energia elétrica ficaram muito caras e ainda assim muitas empresas do setor estão com as finanças na corda bamba. Tudo errado, claro. Mas não se pode mudar tudo de uma tacada porque há leis, contratos e agências. Uma atitude é sair rasgando contratos. Outra é tentar entender como aquela tartaruga foi parar em mangueira tão alta e aí descobrir se é o caso de cortar a mangueira ou simplesmente remover a tartaruga. Só entender a situação já leva a uma redução do voluntarismo. O estreante no governo tende a achar que as coisas erradas – ou que ele supõe erradas – estão assim por má fé ou estupidez de seu antecessor. Quando efetivamente se coloca a par, então entende que além das coisas certas e erradas, existem as possíveis e impossíveis, viáveis e inviáveis. Uma das experiências mais desagradáveis para um estreante no governo é justamente quando percebe que muitas coisas certas são inviáveis. Nesse aspecto, digamos, de aprendizado político e experiência psicológica, o governo Lula se parece muito com o governo Sarney de 1985, que era para ser o governo Tancredo Neves. Só não foi uma mudança maior que a de Lula porque Tancredo foi eleito indiretamente. Mas encerrava 21 anos de regime militar, recuperava-se a democracia, uma virada e tanto. Os quadros do novo governo civil pareciam-se com os de Lula de hoje. Alguns traziam experiência de governos estaduais, mas recente. A oposição dominante, então o MDB, havia alcançado os governos estaduais apenas em 1983, depois das eleições diretas em 1982. Assim, todos os principais quadros do governo Sarney/Tancredo, inicialmente controlado por Ulysses Guimarães, eram estreantes no poder federal. Como o pessoal de Lula hoje, sentiam-se tomados por um forte sentimento de missão: restaurar o regime da liberdade e do povo, varrer para o lixo os restos do regime dos generais, sua destruição política e a “herança maldita” na economia. A situação econômica era muito pior que a de hoje. E os chamados “economistas da oposição”, então no governo, estavam convictos de que fariam a grande mudança. Por exemplo: logo em 1985, o Ministério do Planejamento deveria apresentar o IV Plano Nacional de Desenvolvimento, programação estratégica para cinco anos, se não me engano, que havia sido instituída no governo Ernesto Geisel. Para mostrar a ruptura, o novo programa chamou-se o I PND da Nova República. É verdade que o governo Sarney, no seu segundo ano e em resposta a uma escalada da inflação, saiu-se com uma novidade genuína, o Plano Cruzado, de fevereiro de 1986. Mas teve vida efêmera. Despencou, entre outras coisas, porque o presidente Sarney, claramente despreparado para o serviço que lhe caiu no colo, recusou a orientação da equipe do Cruzado oferecida ainda em junho daquele ano, quando o Cruzado já fazia água. Os economistas diziam que a festa havia acabado e que chegara a hora de medidas duras para combater (imaginem!) os déficits gêmeos, das contas externas e das contas públicas, incluindo demissão de pessoal, reforma previdenciária, reforma bancária, para tapar o buraco dos bancos oficiais, eliminação de subsídios e por aí afora. Além, é claro, de descongelar os preços, retirar dinheiro da economia via impostos compulsórios e aumentar juros, pois a economia já mostrava sinais de superaquecimento. Em vez disso, o presidente pediu um grandioso Plano de Metas, crescimento acelerado à la JK. Deu em superinflação, crise no setor externo, falta de dólares, com o presidente Sarney, cheio de fervor patriótico, anunciando uma “moratória soberana” que até hoje é causa de muitos pontos no risco Brasil. O presidente Lula tem de fazer escolhas semelhantes a cada momento. Baixar os juros de uma tacada ou encaminhar uma série de providências para conseguir uma redução consistente mas lenta? Imaginem o baixo astral. Você ganha a eleição certo de que pode reduzir os juros rapidamente – pois você não está ao lado dos banqueiros, como estava o governo anterior. Aí começam a lhe mostrar que a tartaruga dos juros está lá em cima por causa da inflação, da expectativa dos agentes, do custo do spread bancário. Que para derrubar juros no Brasil é preciso antes conter a inflação, fazer reformas estruturais e mexer nos componentes do spread, mudando a Lei de Falências, ampliando a alienação fiduciária e legalizando o anatocismo. Anatocismo? Eis aí, o cara faz 54 milhões de votos, toma posse na maior festa da história política brasileira, chega lá cheio de vontade e tem de convencer os juízes de que o …. como é mesmo?, anatocismo? … é uma coisa muito legal. E pior, a alternativa é outro governo Sarney. (*) De um samba de Paulinho da Viola Publicado em O Estado de S.Paulo, 10/03/2003

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