NO GOVERNO, A FAZENDA CONTRA TODOS

. Tem de jogar com um time A recuperação do crescimento não depende apenas da equipe econômica O mercado financeiro levou um dia para se ajustar à grande surpresa de janeiro que foi a decisão do Comitê de Política Monetária do Banco Central, Copom, de manter em 16,5% a taxa básica de juros, quando praticamente todo mundo esperava um corte de 0,5 ponto. No dia seguinte, 23 de janeiro, a Bovepa caiu e os juros de curto prazo subiram. Mais um dia, porém, e a Bolsa voltou a subir forte enquanto os juros de longo prazo recuavam. Finalmente, na abertura da semana seguinte, as previsões do mercado financeiro, resumidas no boletim Focus do BC, mostravam inalteradas as expectativas básicas: inflação de 6% para este ano (medida pelo IPCA), com taxa de juros a 13,5% em dezembro e crescimento do PIB de 3,5%. A Bovespa voltou a bater recordes de alta. Isso quer dizer que o mercado comprou pelo valor de face a tese do Copom, pela qual a manutenção dos 16,5% em janeiro foi uma parada técnica, uma interrupção temporária no processo de redução de juros. Por isso, as taxas curtas subiram, enquanto as longas caíam. Mais ou menos como dizer: no fim vai dar tudo certo. A maioria dos analistas continua achando que o BC poderia ter reduzido a taxa mesmo com a alta da inflação corrente, pois este seria um fenômeno sazonal. Ainda assim, na medida em que passavam os dias, foi amadurecendo uma espécie de compreensão da decisão do Copom. Pode ser assim resumida: os oito diretores que votaram pelos 16,5% (contra um) estariam algo assustados ou ao menos preocupados com os índices de inflação mais altos que o esperado, mesmo considerando a sazonalidade, e também teriam ficado com um pé atrás diante das seguidas manifestações de intenção de aumento de preço de diversos setores. Sim, o nível de atividade econômica ainda é baixo, o desemprego é alto (recorde em 2003) e a renda do trabalho caiu quase 13% no ano passado. Não é um ambiente favorável a altas de preços. Mas, por outro lado, assim como o eleitor continua aprovando o presidente Lula, certo de dias melhores, o consumidor manifestou o mais alto índice de confiança em janeiro, conforme a medida da Federação do Comércio do Estado de S.Paulo (Fecomércio). Consumidor animado mas sem dinheiro no bolso não movimenta o comércio, pode-se argumentar. Mas o crédito concedido vem aumentando e a queda dos juros acelera esse processo. Junte-se a isso que os juros básicos caíram 10 pontos no segundo semestre do ano passado e, ao menos no Brasil, ninguém sabe exatamente em quanto tempo e como isso afeta a atividade econômica. Coloque-se no caldeirão a conversa sobre aumento de preços no meio empresarial – e estão dados os fatos a explicar a decisão de dar um tempo na redução dos juros. Tudo considerado, porém, o pessoal está achando que não mudou nada no médio prazo: os juros continuarão em queda e a recuperação da economia segue seu curso moderado. Mas há um outro fator por trás da decisão do Copom – algo que não é oficial, mas corre por aí. Não é explícito, mas a equipe econômica, grupo que inclui a Fazenda e o Banco Central, parece a cada dia mais isolada na defesa da atual política. De todo o resto do governo ouvem-se opiniões segundo as quais o pior já passou, que é hora do crescimento e isso significa um relaxamento da austeridade fiscal e monetária – em poucas palavras, menos juros e mais gasto público. Discute-se no momento a execução do Orçamento 2004. O presidente Lula sancionou sem cortes o texto aprovado pelo Congresso, que inchou as receitas e, assim, aumentou o volume de investimentos do governo federal para R$ 12 bilhões, mais de quatro vezes o realizado no ano passado. Os ministros José Dirceu, da Casa Civil, e Guido Mantega, do Planejamento, têm dito que este Orçamento, o primeiro do governo Lula, será executado inteiramente. Até aqui, funcionava assim: o Congresso aumentava as receitas de modo artificial e distribuía os recursos para investimentos definidos pelos deputados e senadores (as famosas emendas parlamentares). Como o Orçamento é uma autorização de gasto, não uma determinação, o Executivo contingenciava (congelava) boa parte dos recursos e editava uma programação financeira mais realista. Assim ia tocando o barco, liberando os gastos paulatinamente, na medida das receitas. Desta vez, o Congresso acabou por fazer a mesma coisa: aumentou a previsão de receitas de modo no mínimo temerário. Não fossem as contas, a prudência recomendaria que o governo não se comprometesse com gastos para os quais pode não haver fontes. Há informações de que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, responsável pelo superávit primário de R$ 42 bilhões, gostaria de, por ora, contingenciar os investimentos para algo como R$ 2 bilhões. De outro lado, todos os demais ministros não apenas querem todo o orçado, como já antecipam que contam com suplementações. É o caso do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, que tem R$ 1,1 bilhão para a reforma e diz que precisa de pelo menos mais R$ 1,5 bilhão. Lideranças políticas do PT garantem que, desta vez, o dinheiro sai, para o Rosseto e para os outros. O ministro José Dirceu, agora encarregado de toda a gestão do governo, vai operar o Orçamento. E há informações de que aceitaria um contingenciamento mínimo. O presidente Lula tem até o final de fevereiro para editar a programação financeira. Indeciso, ele sancionou o orçamento sem cortes, em 19 de janeiro, mas editou decreto que limita gastos em custeio e investimento a 6% no primeiro mês. E segue o debate interno. Técnicos da Fazenda notam que de uns tempos para cá o governo tem ignorado as restrições da pasta a projetos que aumentam gastos. Por exemplo, o Estado do Idoso, a Política Nacional do Livro e o Renda Básica da Cidadania foram sancionados sem atender as propostas de veto da Fazenda. No momento, tramita na Câmara, depois de ter sido aprovado no Senado, o projeto do senador José Sarney que amplia os benefícios da Zona Franca de Manaus para toda a Amazônia Legal e para o estado do Amapá. A Fazenda não apenas se opôs ao projeto, como o considerou ilegal e inconstitucional. O governo, para pagar o apoio já antigo de Sarney, resolveu apoiar o projeto, mas liberando sua bancada para votar como quiser. No Senado, o líder petista Aloisio Mercadante comandou um voto sim, especificando que se tratava de atender Sarney. Eis aí. Não são poucos os sinais de que há um esforço dentro do governo para relaxar o controle das contas públicas. Se isso for adiante, será um desastre. Quando a política fiscal é frouxa, a monetária tem que ser mais apertada. Ou seja, a manutenção da estabilidade (o controle da inflação) passa a depender só da política de juros do BC – ou do câmbio, como ocorreu no primeiro mandato de FHC. Resultado, teríamos juros altos e/ou real valorizado e controlado, o que não dá em crescimento. Ou então, dane-se a inflação. A verdade é que, em vez de discutir juros e aumento irresponsável do gasto público, o governo precisaria estar concentrado em recuperar eficiência da máquina administrativa para gastar bem o que tem e atrair investimentos privados nos setores chaves de transportes, saneamento, habitação e energia. Em qualquer governo, a Fazenda e o BC são desmancha prazeres. Mas se não há um mínimo de colaboração do resto do governo, sob a liderança do presidente, ou a política econômica torna-se extremamente restritiva ou fracassa. A recuperação do crescimento, hoje, depende menos da Fazenda/BC e mais da eficiência administrativa e política do conjunto do governo. Publicado na revista Exame, edição 810, data de capa 04/fevereiro/2004

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