. Petróleo e crescimento O Katrina é uma má notícia
O mundo todo está queimando cada vez mais petróleo simplesmente porque vive um período de forte crescimento econômico desde 2003. Essa é a razão principal para o alto preço do óleo, hoje quase o dobro do valor médio de 2004. A oferta vem acompanhando a demanda, com os países produtores utilizando ao máximo suas capacidades. Assim, chegou-se a um equilíbrio muito estreito: consumo mundial em torno de 83,9 milhões de barris/dia (mb/d), contra uma produção de 85 milhões, uma sobra de apenas um milhão. Eis a razão do temor provocado pelo furacão Katrina, que arrasou instalações petrolíferas americanas no Golfo do México: 26 plataformas desapareceram e outras 18 encontram-se danificadas, sem contar refinarias e oleodutos submersos. Ainda não se avaliou exatamente quando se perdeu em capacidade de produção, mas sem dúvida é mais que o milhão de barris/dia de apertada folga. O preço escalou logo para 70 dólares o barril e suscitou a especulação: o mundo estaria no limiar de uma nova recessão? A pergunta faz sentido. As três últimas recessões globais foram justamente provocadas por uma súbita falta de óleo, com a conseqüente e imediata alta de preço. No período de 1973/74, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), controlada pelos países árabes e/ou muçulmanos, impôs um embargo ao Ocidente. Em 1979, a revolução xiita no Irã interrompeu o fornecimento do terceiro maior exportador mundial. Em 1990, o Iraque invadiu o Kuwait, também paralisando a produção em uma região crucial. Nas três ocasiões, sempre eventos geopolíticos, o preço disparou ? o pico, em termos reais, foi em 79, quando o barril chegou ao que seria hoje 80 dólares ? e seguiu-se uma queda da atividade econômica em todo o mundo, com inflação. Poderia ocorrer a mesma coisa agora? A resposta ainda é especulativa, pois não se conhece exatamente o tamanho do estrago nas instalações petrolíferas do Golfo do Pérsico. Não se sabe, por exemplo, quando e quantas plataformas e refinarias voltarão a operar. Podem ser 10 dias ou três meses, comentava-se nos primeiros momentos após a passagem do Katrina. Por outro lado, há argumentos importantes para mostrar que a situação atual é bem diferente daquela vivida nos três últimos choques. Primeiro ponto: os preços vinham subindo fortemente antes do furacão. Em números: a média de 2004 foi de 38 dólares o barril, uma alta de 35% sobre o ano anterior. Para 2005, a média prevista, já incorporado o efeito Katrina, é de 57 dólares, portanto uma elevação de quase 50%. Mas o preço atual circula em torno dos 65 dólares, depois do pico de 70 dólares no pior momento do furacão. Cálculos usuais do FMI indicam ? ou indicavam ? que cada 10 dólares a mais no preço do barril cortava 0,75 ponto percentual no crescimento do PIB mundial. Por esse critério, o mundo deveria estar crescendo cerca de dois pontos abaixo do ano passado ? e não está. Em 2004, a economia mundial cresceu 5,1%, o melhor resultado nas últimas três décadas. Neste ano, há uma desaceleração em relação a esse pico, mas o PIB mundial deve crescer 4,3%. Como se explica isso? É que o preço do petróleo subiu não porque faltou produto por uma súbita interrupção da oferta, mas porque o consumo aumentou fortemente, sobretudo nos dois países que puxam o crescimento mundial, Estados Unidos e China. Em expansão acelerada, o mundo precisa de mais energia e queima mais petróleo. Assim como gasta mais aço, cujos preços também dispararam. E como produto e renda aumentam, o mundo pode pagar mais caro pelas mercadorias que consome. Como tem havido ganhos generalizados de produtividade, com redução de custo, a alta da energia é compensada por quedas de preços relativos em outros setores. Assim, há crescimento, petróleo caro e tudo sem inflação ? o ambiente benigno dos últimos três anos. O problema é que esse arranjo está sendo esticado ao limite. Os três grandes sistemas do petróleo ? exploração, refino e distribuição – estão no limite de sua capacidade. A cada mês, parece que fica mais difícil atender o crescimento contínuo da demanda. Claro que os preços elevados estimulam novos investimentos, mas, neste ramo, sua implementação é demorada. Assim, a folga entre produção e consumo se estreita e fica vulnerável a qualquer evento extraordinário, quer seja uma crise geopolítica, quer seja o Katrina. Essa circunstância abre espaço para a especulação no mercado financeiro, no petróleo-papel dos mercados futuros. A qualquer momento, especula-se, vai faltar óleo, de modo que é melhor estar comprado. Compra-se hoje e lá se vão os preços. Logo após a devastação provocada pelo furacão no sul dos Estados Unidos, a cotação do barril passou por alguns momentos dos 70 dólares, recorde nominal. Dias depois, na primeira semana de setembro, voltou ao nível pré-Katrina. A causa foi a entrada em operação de outro esquema de prevenção, as reservas estratégicas da Agência Internacional de Energia, AIE, instituição que reúne países desenvolvidos. Há anos esses países vêm formando estoques estratégicos para atender o consumo em épocas de crise. Nos EUA, essas reservas chegaram recentemente a 700 milhões de barris de petróleo, tudo escondido em cavernas secretas espalhadas pelo país. Pois a AIE passou a colocar no mercado dois milhões de barris/dia, compensando assim as perdas com a quebra da produção no Golfo do México. Tudo considerado, se a capacidade de produção nos EUA for reconstruída em poucos meses, é possível que o mundo escape de mais essa. O que seria um grande alívio para o Brasil, cuja economia passa por um momento raro de crescimento com inflação em queda e exportações em alta. Uma recessão mundial cortaria essa onda. Além disso, falta pouco para o petróleo caro passar a ajudar o Brasil. Neste ano, o país ainda será importador líquido de óleo e combustíveis, ficando com um déficit de US$ 4 bilhões nessa balança. Mas, dentro de alguns meses, com o aumento da produção da Petrobrás, o Brasil será exportador líquido e aí o petróleo caro será lucro. Seria uma pena se viesse justo agora o quarto choque do petróleo. Por sorte, as projeções atuais indicam que o mundo aprendeu a superar esse tipo de situação. Mas o fato básico permanece: é muito estreita a folga de produção em relação a uma demanda aquecida. Um fio de navalha. Publicado na revista Exame, edição 851, data de capa 14/setembro/2005