GOVERNO, PROPAGANDA E REALIDADE

. A corrida entre a propaganda e os fatos Em pelo menos uma coisa o governo Lula é o oposto do seu antecessor: na propaganda. Embora FHC fosse bom de lábia, conforme ampla concordância entre analistas, um dos pontos fracos de sua administração sempre foi a comunicação. Mesmo sem uma análise mais detalhada, parece claro que algo saiu muito errado: o governo tucano investiu forte nos programas de distribuição de renda, introduziu alguns dos mais modernos modelos, obteve avanço em todos os indicadores sociais … e saiu com o carimbo “nada fez pelo social”. Já no caso da administração Lula, o Fome Zero, por exemplo, desde o início foi melhor no marketing do que na efetiva distribuição de benefícios. Tanto que a parte principal do programa está incorporada no Bolsa Família, mas a marca Fome Zero continua dominante. Se FHC permanecia dias e dias sem falar, o presidente Lula está na marca dos 280 discursos – e não parece ser apenas porque ele gosta de um microfone. Mais lógico pensar que há uma estratégia para se aproveitar ao máximo o carisma de Lula. Uma boa dose de propaganda apóia a presença do presidente. Um caso exemplar foi o lançamento da P-52, a plataforma de exploração de petróleo que entrou na campanha do ano passado como exemplo de neoliberalismo do governo FHC. A direção anterior da Petrobrás fazia licitação internacional, pois entendia que a indústria nacional não tinha condições de construir tais plataformas. E assim gerava empregos no exterior e desemprego no Brasil, como atacava o então candidato Lula. Cumprindo promessa de campanha, a Petrobrás de Lula providenciou para que a P-52 fosse encomendada a um estaleiro brasileiro, o Verolme, no Rio. Armou-se uma solenidade para sacramentar a encomenda, oportunidade para um discurso do presidente e vasta propaganda paga na imprensa, incluindo encarte nas revistas. Tudo bem que o governo anuncie seus atos, mas a coisa ficou meio marota. O encarte diz que P-52 “significa um investimento de US$ 900 milhões e a geração de mais de 2.500 empregos diretos”. Anuncia ainda que “uma das maiores plataformas do mundo vai ser montada no Brasil”. E diz, no texto maior: “serão 2.500 empregos diretos na sua construção e milhares de novos postos de trabalho nas indústrias de bens de capital”. Viram como é simples? – disse Lula. Mas não é bem assim. Primeiro, o preço da plataforma, o “investimento”, de US$ 900 milhões, é alto. Não explicaram que saiu bem mais caro do que se tivesse sido feita em estaleiro de fora. Uma das razões é o ICMS de US$ 170 milhões cobrado pelo governo fluminense. Não explicaram também que a plataforma atrasou oito meses porque a direção da Petrobrás ficou negociando preço com os estaleiros. Não explicaram ainda que apenas 40% do investimento será feito no Brasil – pois esse é o índice de nacionalização da P-52. Os cascos e a estrutura da plataforma, a parte principal, serão construídos em Cingapura, que ficará também com a maior parte dos empregos. Na verdade, a P-52 será “montada” no Brasil, como diz a chamada do encarte, e não “construída”, como diz, numa confusão marota, o texto da outra página. Ou seja, a peça de propaganda embaralha as coisas, para esconder que: 1) a indústria nacional de fato não tinha condições de construir a plataforma, como dizia a gestão anterior da Petrobrás; 2) a parte principal da P-52 vem do exterior para ser montada aqui; 3) fica mais caro, o que é prejuízo para os mais de 400 mil acionistas da Petrobrás; e, 4) a estatal, portanto, está pagando caro para gerar os empregos. E, por sinal, quantos seriam mesmo os empregos? São 2.500 empregos diretos na montagem, diz uma das páginas do encarte. Depois, quando se passa sub-repticiamente da montagem para a construção, já são 2.500 diretos mais “milhares” na indústria de bens de capital. Milhares, quanto? Dois, cinco, dez mil? Quantos no Brasil e quantos em Cingapura? Propaganda é assim, na base da impressão. Diz-se: sabor infinitamente melhor. E ninguém precisa explicar quanto. Mas pode ser assim uma propaganda de governo que pretende defender uma linha de política industrial? É disso que se trata. A Petrobrás, uma estatal, está na prática subsidiando o estaleiro nacional (e seus proprietários), ao pagar mais por algo que poderia comprar mais barato no exterior. Está favorecendo com dinheiro público o empresário local. Está também comprando empregos e pagando caro por isso. É uma tese, uma política usada em muitos países, mas precisa ser claramente defendida junto ao público, ao Congresso, que controla o dinheiro público, e junto aos acionistas privados da empresa. O que não pode é fazer uma propaganda que embaralha tudo para passar a impressão de que o governo anterior, vendido, entregava tudo para os estrangeiros, enquanto o atual, patriota, faz tudo aqui numa boa. Tem muito desse viés na propaganda e no marketing do governo. O presidente anuncia que vai dar crédito aos pobres, instituições oficiais dizem que o sistema de microcrédito terá R$ 1,1 bilhão, um banco oficial coloca a propaganda na mídia, com testemunhos. Vai-se ver – e o dinheiro efetivamente emprestado não chega a 1% daquele total e o sistema enfrenta diversos entrave, está longe de decolar. Anunciam-se bilhões para saneamento e habitação – e o dinheiro efetivamente aplicado está na casa do milhão, a duras penas. É curioso. O governo FHC, que parecia mais humilde, digamos assim, na verdade escondia um grau de soberba: acreditava que, sendo um bom governo, isso seria fatalmente reconhecido pelo povo. O governo Lula, que parece demonstrar tanta certeza no seu taco, na verdade não acredita que os outros vão acreditar assim direto. E dá-lhe discurso, dá-lhe propaganda. Assim Lula ganhou a eleição e as pesquisas de opinião mostram que, apesar de um ano péssimo, o povo continua confiando no presidente e esperando dias melhores. Mas a realidade sempre se impõe. Lula, por certo, espera que, quando isso acontecer, será o espetáculo do crescimento. Só que essa expectativa provavelmente é tão exagerada e embaralhada quanto a propaganda oficial. O país está voltando a crescer. Moderadamente, porém. O setor privado ainda não voltou a investir e o setor público continuará com o dinheiro apertado. Promessas terão de ser abandonadas, como a de dobrar o valor real do salário mínimo e recompor o salário do funcionalismo. Há um dilema por trás de tudo: o que tirou o país da crise e recriou condições de crescimento foram políticas que não constam da propaganda oficial (superávit primário das contas públicas, arrocho nos gastos do governo, a dura política monetária de um Banco Central, autônomo na prática, o acordo com o FMI). Não podem constar porque são contrárias à propaganda de campanha. Mas, para o país crescer, precisam ser praticadas para sempre, como diz o ministro Palocci. Há, portanto, uma corrida. Lula e seus principais colaboradores esperam que a política econômica efetiva – e que não está na propaganda – acelere o crescimento antes que o pessoal perceba a diferença entre o discurso e a prática. Apostas? Publicado em O Estado de S.Paulo, 29 de dezembro de 2003

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