. Se o discurso de Lula está certo, o governo está errado Será que o presidente Lula acredita mesmo nas informações e teses que apresentou em seu discurso na Cúpula das Américas, semana passada no México? Porque, se acredita, é grave. Ali estão informações parciais, embrulhadas de tal modo a produzir conclusões tão favoráveis ao governo quanto falsas. E, sobretudo, a tese central do discurso – o ataque ao “modelo perverso de estabilidade econômica de costas para a justiça social” – se for verdadeira, é uma crítica feroz ao próprio governo Lula. Ao mesmo tempo, porém, Lula celebra resultados de sua administração, tais como a recuperação da credibilidade internacional do Brasil. Isso é verdadeiro, mas resultado do tal “modelo perverso”, ou seja, uma política monetária e fiscal que é, talvez, a mais dura de nossa história recente. Há outra hipótese. Quando Lula ataca o “modelo perverso”, pode ser apenas de retórica. Mas qual o objetivo? Mostrar que o presidente fala grosso no estrangeiro? Ou realmente tentar convencer os brasileiros de que seu governo, em 2003, fundou “os alicerces para o País crescer com justiça social”? Porque a retórica não foi modesta. Reparem o tamanho da coisa. Disse Lula: “Em 2003 demos o primeiro passo de um amplo movimento que não se esgota nas emergências do presente – ou do meu mandato presidencial. Fundamos os alicerces para o País crescer com justiça social”. Em apenas doze meses! Demagogia e frases de efeito não precisam ser provadas. São como slogans de propaganda de um produto. Mas o presidente quis demonstrar suas teses – e aqui de novo a coisa se complica. O ponto central é o seguinte: o país abandonou o sistema de estabilidade econômica perversa, que só produziu miséria e exclusão, e partiu para outro de estabilidade com justiça social. O “modelo perverso” atacado só pode ser o Plano Real e sua seqüência, que o PT hostilizou sempre com a idéia de que “apenas” eliminou a inflação. Ora, como já se observou em editorial deste jornal e em artigo de Roberto Macedo, o Plano Real promoveu uma fantástica redistribuição de renda a favor dos mais pobres. É simples como dois mais dois: os pobres não têm como se defender do imposto inflacionário, os ricos têm como ganhar com ele. Elimine a inflação e a renda dos pobres obtém um ganho imediato. Segundo cálculos razoavelmente aceitos nos meios econômicos, o Plano Real retirou da pobreza algo como 15% da população brasileira. O truque, porém, só vale uma vez. Mais ganho de renda, só com crescimento econômico sustentado. E pode haver perda de renda se a inflação voltar – que foi justamente o que aconteceu no Brasil com os surtos inflacionários resultantes das duas megadesvalorizações do real (1999 e 2002). Esses surtos foram combatidos exatamente com os mesmos instrumentos tanto no governo FHC quanto no de Lula: aperto monetário com alta dos juros e redução do crédito, isso acompanhado por arrocho nas contas públicas de modo a produzir o superávit primário, a economia para pagar juros. Tudo sob acordo com o FMI. A diferença foi que o governo Lula mostrou-se muito mais austero, respondendo, corretamente, a uma situação mais difícil. Por isso, aumentou a meta de superávit primário e, em 2003, pela primeira vez em muitos anos, o governo federal reduziu suas despesas em termos reais. Por isso faltou dinheiro para a reforma agrária, demarcação de terras indígenas, segurança pública, estradas, educação, etc. Praticamente todo o governo passou a pão e água. E, claro, a atividade econômica quase parou, com queda da renda e aumento do desemprego. Se os termos do discurso de Lula estão corretos, isso, no tempo de FHC, era “modelo perverso”. Hoje, é responsabilidade fiscal com primazia do social. Onde estaria a diferença? No Fome Zero, talvez, o tema citado pelo presidente logo após a grande frase sobre os alicerces da justiça social. Com o Fome Zero, disse o presidente, foi possível passar ao Bolsa Família, que consolida todos os programas de transferência de renda. Ora, essa argumentação está errada, embaralha fatos. O Fome Zero começou basicamente como um cartão para compra de alimentos sendo que o beneficiário precisava comprovar que efetivamente gastara os recursos comprando comida. Foi criticado pelo pessoal do setor exatamente por essa exigência, considerada ultrapassada. O modelo correto, diziam os críticos, estava nos cartões lançados no governo FHC – bolsa escola e bolsa alimentação, principalmente – que exigem das famílias contraprestações sociais, tais como manter os filhos na escola e comparecer regularmente aos postos de saúde. O correto, diziam ainda os críticos, seria unificar os cartões, de modo a evitar desperdícios. Ora, o Bolsa Família é exatamente isso. Eliminou-se o cartão do Fome Zero (com a exigência de comprovar a compra de alimentos) e reuniu-se tudo no novo programa, com as contraprestações do sistema criado no governo FHC. Ou seja, a experiência com o cartão do Fome Zero atrasou essa providência correta. É o contrário do que disse Lula, que o Fome Zero permitiu o Bolsa Família. São fatos conhecidos. Ao insistir em versões embaralhadas, o que pretende o presidente? Mudar os fatos pela propaganda? Não há nada mais no discurso que sustente a tese de que o modelo perverso tornou-se social. Lula faz referências en passant ao programa de microcrédito e ao “maior financiamento para a agricultura familiar que o Brasil já teve”. O primeiro não decolou. Quanto à agricultura familiar, dada a expansão do setor, a cada ano se terá o “maior financiamento”. Não se inventou o financiamento, nem se o elevou exponencialmente, apenas teve um crescimento normal – muito pouco para mudar o caráter de um modelo econômico. E, registre-se, o dinheiro que teve ali foi o que faltou para a reforma agrária, por exemplo. Nas celebrações, ao final do discurso, Lula cita: . a recuperação da credibilidade internacional, obtida com a política rigorosa de estabilização; . as reformas da Previdência e Tributária; a primeira, um avanço, constava da agenda do governo anterior e consta das agendas de praticamente todos os países, tenham governos de direita ou de esquerda; a segunda, ainda não se sabe o que será; . a redução dos juros, obtida com a estabilidade rigorosa incluindo a alta inicial dos juros; . o aumento das exportações, apoiada por uma série de circunstâncias que não dependeram do governo; . o recorde na produção agrícola, cujos alicerces foram fundados ao longo de muitos anos, sendo que um deles é justamente a estabilidade alcançada com o Plano Real e o outro é o Moderfrota, do governo anterior. Finalmente, Lula diz que a relação do Brasil com a América do Sul é “quem sabe a melhor de toda nossa história”. Olha-se o noticiário e o que se vê? A Argentina, principal parceira, exigindo providências contra a “invasão” de produtos brasileiros, exatamente como já ocorreu durante os governos “neoliberais” de Carlos Menem e FHC. O Mercosul não está nem melhor, nem pior do que já esteve e um número maior de países sul-americanos negocia acordos comerciais com os EUA. Tudo considerado, se o discurso de Lula está certo, então seu governo está errado.E inversamente. Publicado em O Estado de S.Paulo, 19 de janeiro de 2004
GOVERNO LULA, O QUE DIZ E O QUE FAZ
- Post published:9 de abril de 2007
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