Carlos Alberto Sardenberg
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem prova de interpretação de texto. Em tese, não importa o conteúdo do texto apresentado aos alunos, pois eles não são chamados a concordar ou discordar. Apenas entender o que o autor quis dizer.
A prova seria neutra, portanto. Mas, sendo assim, parece razoável que os testes, principalmente quando tratam de política, sociologia, economia ou história, tragam diferentes visões teóricas. Dupla neutralidade.
Não é o que se viu no último Enem. Todos os textos revelam clara orientação de esquerda, não raro de uma esquerda velha.
A questão 61 da prova branca apresenta um texto de Michel Foucault, filósofo francês, sofisticado pensador de sucesso nos anos 70 e 80. Difícil leitura, mesmo para universitários. Mas a frase do Enem não é das mais complicadas. Afirma que o capitalismo introduz ilegalidades em todas as camadas da sociedade. Mas sendo que as classes privilegiadas desfrutam de ilegalidades mais proveitosas, digamos assim. De qualquer modo, capitalismo é igual a ilegalidade.
Seguem-se questões com base em textos de outros dois filósofos franceses do século passado, Sartre e Merleau-Ponty. Foram pensadores de esquerda, mas na prova do Enem as frases não têm contexto político direto.
Já a questão 46, do filósofo marxista alemão Theodor Adorno, também do século passado, não deixa dúvidas sobre a orientação. Sustenta que no capitalismo, a diversão é o prolongamento do trabalho. E se o trabalho é explorado pelo capital, como entender a diversão?
A questão 60 traz um texto que ataca a “mágica do Google Assistant” e sua inteligência artificial. Diz que seus trabalhadores são obrigados a tarefas repetitivas, sem poder expressar criatividade, forçados a horas extras sem remuneração e que ganham muito mal. Escravos dos algoritmos.
O Google, gente? Quem já frequentou alguma das sedes da empresa vê exatamente o contrário: pessoas criativas, gerando programas e aplicações, num ambiente de conhecimento e cultura. E ganham bem. Mais do que os trabalhadores das indústrias antigas, uma montadora de carros, por exemplo.
O futuro está nessa tecnologia, na inteligência artificial.
De novo, sei que não se pede ao aluno para concordar com o texto. Mas certamente deixa o estudante embaraçado ao topar com algo tão distante da realidade. Dificulta responder se o aluno conhece o ambiente da tecnologia ou se pretende trabalhar nesse lado.
Mas a campeã de esquerdismo velho é a questão 89, cujo texto sustenta que o agronegócio no cerrado comete vários pecados, como a introdução da mecanização.
É sério – a mecanização, base de ganhos de produtividade, é um mal.
Tem mais: o agronegócio privatizou a “a água, as sementes, os minerais e as terras”. E levou à “pragatização dos seres humanos e não humanos”. E tudo isso para acabar com a vida dos camponeses.
A menção a camponeses chamou a atenção. Mesmo no pensamento de esquerda, não se utiliza mais esse conceito. Fala-se de trabalhador rural, pequeno produtor familiar, por exemplo.
A fonte da é um ensaio publicado na Revista de Geografia da UEG, que começa pela discussão do conceito de camponês. Baseado em teorias de Marx e Lenin!
Para entender o agronegócio do século 21.
De novo, o aluno não é obrigado a concordar. Mas imaginem o desconforto de um jovem que more numa das tantas áreas do Brasil onde o agronegócio gera riquezas e intensa atividade econômica. Ele lê aquele texto e vai procurar onde está pegadinha.
Imagine o desconforto de um aluno que pretende frequentar alguma escola de agronomia, pois vê no noticiário que o Brasil sabe produzir alimentos para o mundo.
Por outro lado, há questões que comentam positivamente a agricultura urbana no Rio. As hortas de apartamento no lugar da enorme produção do agro?
A orientação da prova se mostra também pelo que não traz. Nada sobre democracia, liberdade de imprensa, direito de voto, valores individuais.
Trata-se de um sutil truque de doutrinação. As questões estão em um banco de dados do Inep, alimentado constantemente. Há de vários tipos. A escolha revela a orientação da prova. E essa orientação determina o que as escolas vão ensinar. Trágico.