Do excesso de denúncias ao liberou geral
Carlos Alberto Sardenberg
O Brasil estava à beira de uma crise fatal no sistema financeiro em 1995. Dito de outra maneira: boa parte dos bancos, públicos e privados, não tinha o dinheiro que os clientes haviam depositado ou aplicado.
A origem, paradoxal, dessa crise estava no fim da inflação. Bancos viviam do open market. Pegavam dinheiro dos clientes, remunerados a uma fração da inflação, e aplicavam toda noite em títulos do governo, recebendo taxas que cobriam a inflação plena e mais alguma coisa.
Quando a inflação, com o Real, caiu para 1% ao ano, a farra acabou. Muitos bancos não apenas tinham ativos podres, maus empréstimos (a empresas amigas e familiares), como tinham passivos muito superiores.
O governo FHC ficou diante do dilema: deixar a coisa rolar, quer dizer, deixar que a quebradeira ocorra na ideia de que isso seria um saneamento “natural” do mercado; ou fazer uma intervenção generalizada, colocando dinheiro para salvar não os banqueiros, mas os clientes e o sistema.
O Banco Central lançou então, em novembro de 1995, o Proer, Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional. Na ocasião acusado de ser uma farra de dinheiro público para os banqueiros, mostrou-se na verdade uma original e eficiente operação de saneamento – depois internacionalmente elogiada.
O BC decretou intervenção nos bancos praticamente quebrados e dividiu cada instituição em duas – a boa e a ruim. A parte boa (bons ativos) foi vendida a outros bancos. A parte ruim foi liquidada pelo BC, que teve, claro, de colocar dinheiro público para ressarcir, de novo, não os banqueiros, que perderam seus bancos, mas a clientela. De todo foi o mais barato programa de saneamento financeiro em comparação com outros países do G20.
Mesmo assim, muitos diretores do BC passaram anos se defendendo em processos por improbidade administrativa. O Ministério Público simplesmente não entendeu o processo ou não quis entender, por razões políticas. E aproveitou brechas da lei de improbidade, seus pontos vagos e muito abertos, para processar um monte de gente.
Ou seja, precisava, sim, fazer a reforma da lei de improbidade de 1992. Do jeito que está, de fato afasta muita gente boa do serviço público.
Mas o projeto aprovado a toque de caixa pela Câmara de Deputados, sob a liderança de seu presidente, Arthur Lira, virou a coisa pelo avesso. Aliviou geral e merece o apelido de lei da impunidade.
Primeiro, reduziu demais o elenco de crimes de improbidade. Depois, estabeleceu que é preciso provar materialmente que ouve dolo do agente público para se caracterizar a improbidade. O que é muito difícil.
Por exemplo: ao atrasar a compra de vacinas, rejeitar o uso de máscaras, condenar as regras de isolamento, tentar a imunidade de rebanho e receitar remédios ineficazes, o presidente Bolsonaro é responsável pelo alto número de mortos por Covid.
Pelo texto aprovado na Câmara, porém, ele só poderia ser responsabilizado se ficasse provado que tinha a intenção de matar – prova obviamente impossível de ser feita.
Além disso, o projeto da nova lei reduz os prazos de prescrição. Combinando isso com a lerdeza da justiça, praticamente todo mundo vai escapar. Vários processos já em andamento na Lava Jato seriam imediatamente arquivados. O próprio presidente da Câmara se livraria de processos originados em sua atuação como deputado estadual em Alagoas.
O projeto está agora com o Senado. A ver. Mas do jeito que está, o objetivo é claro: passar do excesso de acusações injustas para o liberou geral. Triste é que esse projeto tenha sido aprovado por quase todos os partidos, dos bolsonaristas aos petistas, o que dá bem um retrato da política brasileira. De comum a esses partidos, só o fato de serem todos apanhados em denúncias sérias e bem provadas.