DILEMAS DO GOVERNO LULA

. Dilemas crescem diante de Lula Quando candidato, Luís Inácio Lula da Silva prometeu certa vez que acabaria com o MST. No bom sentido. Disse que distribuiria tanta terra que não sobraria um Sem Terra sequer, de modo que o movimento desapareceria por falta de objetivos e de militantes. Embora o próprio Lula, já presidente eleito, se mostrasse muito otimista quanto à possibilidade de acelerar a reforma agrária, parece claro que não se poderia esperar o fim do MST, daquele jeito, em apenas seis meses de governo. Mas se poderia esperar uma antecipação da paz no campo, como aliás o presidente Lula tem dito quando se encontra com os agricultores do agronegócio (proprietários grandes e médios, produzindo com alta tecnologia). Lula tem defendido a tese segundo a qual o MST exacerbou suas atitudes no governo anterior porque este teria um viés antipopular em geral e anti-reforma agrária em especial. Na exata medida em que assumisse um presidente comprometido com o MST e a reforma, o motivo da bronca desapareceria e as coisas se processariam pacificamente. Em vez disso, observa-se hoje no governo Lula e em alguns governos estaduais uma espécie de licença para invadir, largamente utilizada pelo MST. Há mais invasões do que antes e uma das razões, como disse ao Estado o principal líder do MST, João Pedro Stédile, é que não há mais repressão. De fato, não há. Ao contrário, a lei determinando que propriedade invadida fica fora da reforma agrária virou letra morta. Mandados de reintegração de posse não são cumpridos. As Polícias Militares, encarregadas de cumprir os mandados, protelam as ações, prolongam as negociações, preferem esperar. Está claro que é preciso negociar e evitar conflitos. Mas não é apenas isso que acontece. Como admitiu o governador do Paraná, Roberto Requião, a posse de Lula criou um ambiente favorável à reforma (e ao MST), de modo que as autoridades locais não querem encrenca com o MST, com receio de bater de frente com o governo federal. No Paraná, o governador faz de tudo para reforçar esse ambiente. De maneira que está acontecendo o contrário do que Lula esperava. E, entretanto, a tese de que um presidente de esquerda contribuiria para pacificar o campo faz todo sentido. Por que o MST sairia por aí promovendo invasões se tivesse certeza de que o governo, seu governo, faria logo a reforma? Assim, de duas, uma: ou MST está em dúvida sobre a capacidade do governo em avançar com a reforma agrária ou está criando fatos consumados de modo a empurrar o governo para a esquerda. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. E nisso o MST não está só. Muita gente está tentando empurrar Lula para a esquerda – mas a esquerda antiga, a do confronto e da ruptura dos contratos. Importante fazer essa distinção. Lula continua se considerando de esquerda, mesmo com a política econômica clássica e as propostas de reforma da Previdência pública. Ainda na semana passada, voltou a apresentar a reforma previdenciária como questão de justiça social, de busca da igualdade (por que um trabalhador rural se aposenta dos 60 anos, com salário mínimo, e uma advogada do governo se aposenta aos 48, ganhando salário integral? – perguntou o presidente no Congresso dos Metalúrgicos do ABC). Esse mesmo Lula tem mostrado entusiasmo com o agronegócio brasileiro, aliás representado no governo por dois ministros, Roberto Amaral, da Agricultura, e Luiz Furlan, do Desenvolvimento. E de fato, esse setor, com sua enorme capacidade exportadora, é peça essencial na política econômica deste governo. Para Stédile, porém, esse agronegócio é uma porcaria capitalista que gera lucros para poucos e nenhum emprego para seu pessoal. Para ele, o que vale é a agricultura familiar, levar mais gente para o campo, exatamente o contrário do que acontece em todo processo de forte desenvolvimento capitalista. O MST não quer esse tipo de desenvolvimento, que, entretanto, é o alvo da política econômica comandada pelo ministro Antonio Palocci. Eis o dilema que cresce diante de Lula e se manifesta em diversos outros setores, em menor ou maior escala. No mesmo congresso metalúrgico, o presidente se vangloriou da credibilidade internacional que conquistou e que considera a “maior da história do país”. Exagero, claro. Considerando só o período recente, o risco FHC, na média dos seus oito anos, foi inferior ao risco Lula. Mas é fato que Lula saiu da credibilidade zero para um nível muito elevado e amplo. O presidente é respeitado pelos demais chefes de estado, pelos organismos internacionais (é o atual “queridinho” do FMI) e pela imprensa externa, especialmente nos países desenvolvidos. Só que essa credibilidade decorre justamente da política econômica clássica tão bem desenvolvida pelo ministro Palocci e tão criticada pela esquerda à antiga, tipo MST e CNBB, por exemplo. Lula tenta se equilibrar nesse pé trocado. O esforço mais recente é dar uma mão de tinta vermelha em seu governo. Por exemplo: o apoio a um projeto de lei no Senado que cancela privatizações; o uso de bancos oficiais para dar crédito subsidiado (coisa que já derrubou as ações do Banco do Brasil). Ou então, o esforço para mudar conceitos, como apresentar a reforma previdenciária como de esquerda. Ainda na última sexta, o ministro da Educação, Cristovam Buarque, decretou: a estabilidade financeira é de esquerda. É debate atrasado. Em qualquer país com desenvolvimento intelectual e político razoável, moeda estável não pode ser de esquerda nem de direita. É condição para desenvolvimento sustentado, para qualquer tipo de desenvolvimento. Idem para a estabilidade das contas públicas. Mas a necessidade de dar conta da esquerda atrasada obriga o governo Lula a essas manobras. Há limites, porém, e eles são cada vez mais estreitos. Ou seja, não dá para manter ao mesmo tempo o apoio ao agronegócio e a tolerância (ilegal) com as invasões e ataques do MST. Está certo que Lula precisa fazer algumas concessões à sua ala esquerda para poder tocar a política econômica e as reformas. O problema é que certas concessões começam a ameaçar aquela credibilidade de que ele se gaba. Em tempo: não existe a menor possibilidade de Lula assentar todos os Sem Terra e ainda dar melhores condições aos já assentados. Como prometido. Não há dinheiro nem estrutura para isso. Assim, só há duas possibilidades de o MST parar com invasões de terras, prédios e pedágios: ou um acordo com o governo ou a repressão do governo, no caso, simplesmente cumprir a lei. Como o MST diz que não tem acordo, ou o governo age ou engole a “tese” segundo a qual as invasões antes eram contra o governo e agora são a favor. Se as reformas viraram de esquerda . . . Publicado em O Estado de S.Paulo, 30/06/2003

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