A vida tem preço. É cara
Carlos Alberto Sardenberg
Aconteceu antes da pandemia, mas o assunto permanece atual. Cenário: um amplo congresso reunindo juízes, advogados, funcionários da Agência Nacional de Saúde, representantes de órgãos de defesa do consumidor, executivos dos planos de saúde e hospitais. Tema: as ações que cobravam das seguradoras tratamentos e remédios que não constavam do rol da ANS ou do contrato. (Na semana passada, o STJ voltou ao tema).
Um desembargador conclui sua apresentação em grande estilo: “toda vez que cai na minha mesa uma disputa entre o segurado e o plano, eu decido a favor do segurado, porque a vida não tem preço”.
Juízes de diversas instâncias têm decidido na mesma direção. No começo de 2019, a ministra Carmen Lucia, do STF, sapecou: “Saúde não é mercadoria, vida não é negócio, dignidade não é lucro”. Tratava-se de uma resolução da Agência Nacional de Saúde (ANS) que autoriza planos a cobrarem uma co-participação dos segurados em determinados procedimentos. A ministra, claro, decidiu contra os planos.
Na verdade, não deveria ser assim. Colocada nesses termos – segurado, um indivíduo com um problema de saúde, versus os planos, grandes corporações – a decisão será sempre a favor do indivíduo. A Constituição determina: saúde é direito de todos e dever do Estado.
O problema é que a vida tem preço. No primeiro caso, para começar, a prestação mensal do plano.
No caso da ministra, é verdade que não se encontra o produto saúde numa prateleira de supermercado, mas é preciso comprar um monte de produtos e serviços para ter saúde: comida, um bom lugar para morar, água, luz elétrica, roupas e… consultas médicas, vacinas, remédios, talvez uma cirurgia.
Também não se encontra doença na prateleira do supermercado – com o perdão do óbvio – mas quem não pode pagar pelos remédios, adoece.
Dirão: mas quem é atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não paga nada e, sendo tudo de graça, não se encontra aí qualquer relação com o mercado.
Outro equívoco.
Primeiro, que não é de graça. Todos os brasileiros, saudáveis ou doentes, pacientes ou não do sistema público, pagam impostos para financiar o SUS. Além disso, o SUS compra remédios, contrata médicos e enfermeiros, aluga serviços de hospitais particulares — e tudo isso tem preço, cada vez mais caro. As novas tecnologias e medicamentos de ponta tornam a medicina muito mais efetiva. E mais custosa.
A questão séria, portanto, é muito simples de formular: como financiar os sistemas de saúde. E pelo que se vê no Brasil e mundo afora, é difícil definir uma política pública que contemple as questões econômicas e morais.
Por aqui, está claro que o SUS não dá conta de sua missão constitucional. Não consegue atender toda a população brasileira. Além disso, está sub-financiado para o que faz no momento. Remunera mal tanto seus profissionais quanto os hospitais que atendem SUS.
Vamos falar francamente: por esse interior, tem gente que morre por falta de dinheiro – dinheiro público para os serviços locais.
Ou seja, de qualquer perspectiva, social ou econômica, é preciso fortalecer o SUS com mais dinheiro e capacidades.
Mas temos debatido mais o outro lado da história, a assim chamada, na Constituição, a saúde “suplementar”. Nada menos que 49,3 milhões de brasileiros pagam planos e operadoras privados. Entre estes, milhares de funcionários públicos.
A dificuldade aqui é equilibrar direitos e necessidades dos segurados com a situação econômica dos planos. É interesse nacional. Imaginem que os planos se tornem financeiramente inviáveis – como o SUS atenderia mais 50 milhões?
A Constituição garante o direito à vida (o que significa que o brasileiro não pode morrer, ironizava Roberto Campos), mas a lei não paga a vida. É preciso estudar, trabalhar e comprar um monte de coisas para viver.
É nesse contexto que se deve analisar a recente decisão do STJ, estabelecendo que o rol de atendimentos definido pela ANS é taxativo. De certo modo, uma decisão fora da curva. Tema do próximo artigo.