A NOVA CLASSE C ESCAPA DO GOVERNO

–Ser pobre é depender do governo—

O essencial desta história está na estupenda reportagem de Eliane Brum, na revista Época desta semana, sob o título ?Uma família no governo Lula?. Acompanhando a vida da família de Hustene Costa Pereira, na periferia de Osasco, a jornalista mostra como se formou e como vive hoje a nova classe C (ou ?Nova Classe média?, tema de tantos estudos aqui e por toda a América Latina). Trata-se de uma exata peça jornalística: a partir de um caso particular ilumina a situação geral.
O que se segue aqui não substitui a leitura da reportagem. Ao contrário, são observações e conclusões a partir daquele texto e, claro, de minha exclusiva responsabilidade.
Primeiro ponto: o avanço da família, da pobreza para a classe C, não decorre de nenhum programa social de governo. A vida melhorou a partir de empregos formais obtidos no setor privado, isso principalmente a partir de 2004. Nesse ano, a economia brasileira, ancorada na estabilidade macroeconômica e apoiada por um ambiente externo extremamente favorável, começava a deslanchar.
Pode-se dizer que o governo colaborou no processo com os reajustes reais do salário mínimo ? base da remuneração de membros da família ? e com a fiscalização para forçar as empresas assinarem as carteiras de trabalho. Faz sentido, mas convém notar que a formalização do emprego é uma conseqüência do crescimento das empresas. Só formalizadas, por exemplo, elas poderiam ter acesso ao crédito que começava a se expandir ? aliás, em outro efeito do ambiente de estabilidade.
Por outro lado, as empresas puderam pagar o salário mínimo oficial não porque o governo determinava, mas porque estavam faturando mais. Todos os salários tiveram ganhos reais nesse período.
Segundo ponto: na trajetória da família o que falhou foi o governo, em especial o SUS. Quando Hustene precisou de cuidados médicos, o serviço público não estava lá. Sofreu com filas, meses de espera por uma consulta, diagnósticos ligeiros e inteiramente equivocados, falta de remédios. O que veio a funcionar depois foi o INSS, que passou a pagar o auxilio doença para um homem já incapaz de trabalhar.
Filho de nordestino retirante que se tornou metalúrgico no ABC, Hustene pode estudar sete anos na escola pública. Determinado, fez outros cursos e aprendeu com suas leituras. Mas hoje, quando acompanha as tarefas escolares de uma neta, percebe e lamenta a baixa qualidade do ensino público.
O que nos leva ao terceiro ponto: a família comemora quando escapa do serviço público. Seus membros contam com orgulho quando conseguem pagar uma escola particular e sentem-se aliviados quando obtêm acesso a planos de saúde privados.
Por outro lado, Hustene lamenta que os mais pobres não tenham acesso a um serviço público que reconhece de qualidade, as universidades estaduais e federais.
O quarto ponto é o crédito, que permitiu a compra do computador, da geladeira de duas portas ? com congelador que armazena as carnes compradas em promoções ? e da TV de tela plana de 42 polegadas.
Não, não é um bem supérfluo. Pesquisas do instituto Data Popular já haviam mostrado como a TV tem uma função agregadora, reúne e mantém a família em casa. Claro que um aparelho de qualidade funciona melhor. A reportagem confirma essa informação. Mostra também que aparelhos de DVD e videogame, também adquiridos, só são considerados supérfluos por quem pode ter dois ou três em casa no momento em que quiser.
O último ponto é sobre as ameaças que podem atingir essa nova classe C e rebaixá-la à condição anterior de pobreza. A principal, claro, seria uma recessão ou mesmo um ritmo baixo de crescimento que levasse à perda de empregos. E aqui aparece, de novo, a falha do governo. Sair do plano de saúde privado e cair no SUS, trocar a escola particular pela pública, isso é considerado uma forma de empobrecer.
A família Costa Pereira não está preocupada com isso. Acredita piamente que o governo Lula, especialmente o do segundo mandato, deu um jeito no Brasil.

Publicado em O Globo, 06 de janeiro de 2011

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