Uma confusão anunciada
É simplesmente inacreditável a lambança feita pelo governo federal, mas também pelos governos estaduais, políticos, fazendeiros e frigoríficos, nessa história da exportação da carne para a Europa.
A coisa começou lá em 2002. O Brasil foi exportando carne de boi para a União Européia, aumentando as vendas progressivamente, mas tudo isso ao lado de uma negociação em que os europeus deixaram claro que iriam exigir a tal rastreabilidade ? um moderno sistema pelo qual é possível saber de onde veio o bezerro, onde foi criado e abatido.
Os produtores brasileiros foram introduzindo o sistema paulatinamente ? primeiro rastreando o animal adulto ? e o governo federal assumiu o compromisso de completar o ciclo, do bezerro ao boi, até dezembro de 2007. A partir de fevereiro deste ano, só poderia ser exportada para a Europa a carne de animais inteiramente rastreados.
No final do ano passado, o governo brasileiro concluiu uma lista de pouco mais de 8 mil propriedades certificadas para exportar. O processo foi concluído por empresas certificadoras.
Em outubro do ano passado, os técnicos europeus vieram ao Brasil checar a lista e escolheram uma amostra de fazendas certificadas em alguns estados. Toparam com problemas grosseiros, conforme relatou o presidente da Associação Brasileira de Criadores, Luís Alberto Moreira Ferreira, em entrevista que me concedeu na sexta passada, na rádio CBN.
Havia, além de erros grandes, fraudes enormes, como documentos forjados. Muitas fazendas certificadas não tinham sido visitadas por ninguém. E muitos proprietários simplesmente vetaram a entrada dos técnicos europeus.
Obviamente, a lista foi condenada. Foi então que os europeus pediram uma nova lista, mas preparada diretamente pelos técnicos do Ministério da Agricultura, que teriam de auditar as certificações feitas anteriormente.
Apareceu, então, a exigência da tal lista de 300 fazendas. Por que 300?
Conforme relatos de pessoas envolvidas, aconteceu o seguinte. Era novembro de 2007 e a nova lista deveria estar concluída em dezembro ou, estourando, em janeiro último. Numa conversa em Brasília, diz que os técnicos europeus perguntaram aos colegas brasileiros quantas fazendas conseguiriam fiscalizar nesse período. E os brasileiros, depois de comentar sobre a precariedade de recursos, responderam: umas 300.
Pronto, cravaram o número.
Mas, em janeiro, o Ministério da Agricultura mandou aquela lista com 2.800 fazendas. Os europeus, de novo com razão, desconfiaram e não aceitaram. Depois, se soube por aqui que o Ministério, não tendo de condições de fiscalizar muitas, pedira auxílio a secretarias estaduais, que incharam as listas com fazendas incluídas ?politicamente?, dos correligionários.
Foi aí que o Ministério reconheceu o erro, reduzindo a lista para 600 e tantas fazendas, depois para 523, relação essa apresentada na última sexta em reunião em Bruxelas, ainda sob suspeitas.
Ficou acertado que os técnicos europeus voltam ao Brasil no final deste mês, para novas vistorias. E a exportação de carne para a Europa continua embargada, com prejuízos diários para o país, para os produtores e, sim, para os consumidores europeus. As autoridades européias foram pacientes, deram e adiaram vários prazos, não por serem compreensíveis, mas porque precisam da carne brasileira, boa e de preço competitivo.
Aliás, comenta Luís Alberto Moreira Ferreira, parece que os brasileiros confiaram demais nessa necessidade européia. Algo assim: ?eles precisam da nossa carne, não há disponibilidade no mundo, de modo que eles não podem suspender as importações danem-se as exigências?.
Uma atitude tão estúpida quanto as declarações de autoridades e políticos segundo as quais a Europa quer esmagar a produção brasileira, quer impor seus sistema ao Brasil ? e tantas outras bobagens.
A coisa é simples: quer vender para os europeus? Siga as regras. Do mesmo modo, por exemplo, e como nota Moreira Ferreira, frigoríficos brasileiros abatem animais conforme os preceitos judeus para poder vender a Israel. Assim como produtores de frangos abatem pelos preceitos muçulmanos para ter acesso ao rico mercado árabe.
Além disso, o rastreamento é uma exigência cada vez maior nos países desenvolvidos, onde os consumidores, especialmente os mais ricos, fregueses que compram as carnes nobres, e caras, querem produtos que possam ser auditados na origem e qualidade.
Finalmente, adotar o rastreamento é bom para o país produtor, nota Moreira Ferreira. É uma garantia não apenas de cumprimento das condições sanitárias, como dá segurança jurídica a todo o processo.
O sistema é caro e trabalhoso. É preciso colocar um brinco com chips em cada animal, mas não há alternativa se o país quer ocupar a posição de líder mundial na exportação de carnes.
Pecuaristas e frigoríficos deveriam dividir os custos e assumir o processo, em vez de ficar reclamando e tentando enganar os europeus e o governo. E tem que ser uma atitude do setor privado, dada a óbvia incapacidade e incompetência do governo.
É possível fazer. Já há no Brasil fazendas e frigoríficos de ponta, que acabam prejudicados pela situação dos outros e pelas confusões do governo.
Aliás, todo esse episódio é uma amostra do Brasil de hoje. De um lado, um agronegócio moderno, competitivo, que ganha espaço no mundo todo. De outro, empresários picaretas, vivendo às custas de politicagem. E um governo incompetente, que deixa politizar questões técnicas.
Publicado em O Estado de S.Paulo, 18 de fevereiro de 2008