A DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA

. Não há risco de calote. De onde vem o medo? Todas as segundas-feiras, o Banco Central coloca em seu site (www.bcb.gov.br) o Relatório de Mercado – um resumo das projeções que as principais instituições financeiras instaladas no país e as mais importantes consultorias fazem sobre a economia brasileira. São cenários de curto, médio e longo prazo, elaborados conforme a mais moderna teoria econômica. Na segunda passada, quando já se havia instalado o nervosismo no mercado financeiro, embora não ao ponto do final da semana, o Relatório exibia um país com problemas, mas em situação estável e, sobretudo, com uma clara tendência de melhora em todos os aspectos. No que interessa para o momento, não se vê ali nada parecido com um país à beira de um colapso ou de um calote generalizado nas suas dívidas interna e externa. Ao contrário, o que se observa ali é inflação em queda, recuperação do crescimento e redução do endividamento público. Já o dólar, a Bolsa, as taxas de juros e o risco Brasil da última sexta-feira sugerem exatamente a iminência de um colapso. Tome-se o risco Brasil, por exemplo, que chegou a 1.770 pontos, atrás apenas da Argentina. Esses 1.770 pontos significam que o investidor exigia, para comprar um título da dívida externa brasileira, uma taxa de juros 17,7 pontos percentuais acima de um título do Tesouro americano, a aplicação padrão, por ser a mais segura do mundo. O título americano de 30 anos (T-Bond) fechou a última sexta com juros de 5,3% ao ano, de modo que o papel brasileiro equivalente pagaria 23% ao ano, em dólar, naturalmente.     Pode-se medir o risco também pelo preço do título no mercado privado. Imaginemos um título da dívida externa brasileira (o C Bond, o mais negociado) no valor de 1 milhão de dólares, com vencimento em 15 anos e taxa de juros, no lançamento, de 13% ao ano. É uma espécie de uma promissória, de modo que o negócio foi assim: o governo brasileiro vendeu o papel por um milhão de dólares (tomou um empréstimo, portanto) prometendo devolver o dinheiro em quinze anos, pagando, a cada ano, juros de 13%. Suponha que o dono desse título desconfia que estão diminuindo as chances de receber os juros anuais ou o seu milhão no prazo acertado. Ele se desfaz do papel no mercado privado internacional. Como essa desconfiança corre o mercado, o comprador do papel exige um deságio, um desconto, por conta de correr o risco. Pois bem, na última sexta, o C Bond brasileiro foi vendido a uma taxa de 55,8 centavos por dólar. Como se aquela promissória de um milhão tivesse sido vendida por 558 mil dólares. Pela lógica, quanto menor o preço do papel, maior a taxa de juros embutida. (No caso, a taxa de juros contratual era de 13% ao ano sobre o valor nominal de um milhão de dólares, ou seja, 130 mil dólares/ano. Assim, quem comprou com deságio vai receber juros de 130 mil sobre 558 mil, ou seja, rendimento de 23%, em números redondos, que é 17,7 pontos percentuais ou 1.770 pontos, o risco Brasil, acima do T Bond americano). Ora, esse risco e esse deságio indicam, pelos parâmetros do mercado, títulos à beira de não serem quitados no principal ou nos juros anuais. Pois bem, quais as chances do governo brasileiro não honrar os C Bonds que estão na praça mundial? Zero. A dívida externa pública está abaixo dos US$ 100 bilhões e é de longuíssimo prazo. Neste ano, por exemplo, os vencimentos de juros e amortizações do principal somaram US$ 11,6 bilhões, mais da metade já quitada ou rolada a taxas de juros decentes. Faltam uns US$ 5 bilhões – moleza diante de reservas superiores a US$ 40 bilhões. Ou seja, para que o governo ficasse sem dólares para cumprir seus compromissos seria preciso que ficasse uns cinco anos em crise aguda, sem captar um único centavo no mercado internacional. Crises desse tipo não acontecem de uma hora para outra, mas em seguida a longos períodos de deterioração e não é o que se vê em relação à dívida externa pública. Ela tem sido alongada ano a ano. Mas tem a dívida externa privada, outros US$ 100 bilhões. É, essencialmente, dívida tomada por grandes bancos e grandes companhias brasileiras, como a Petrobrás, por exemplo, que têm amplo acesso ao mercado internacional, às vezes em condições melhores do que o governo. Essa dívida, mesmo em condições difíceis recentes, tem sido negociada normalmente, embora a juros mais altos, entre credores e devedores privados. É verdade também que a economia brasileira, no conjunto, precisa captar anualmente cerca de US$ 50 bilhões no mercado internacional para pagar o déficit nas contas externas e mais as rolagens e amortizações. É a chamada vulnerabilidade externa. Se fica mais difícil obter esses dólares, o que acontece? O preço do dólar em reais fica mais caro e sobem as taxas de juros. Assim, aumenta, em reais, o montante da dívida de quem deve em dólares. O governo tem aquela dívida de US$ 100 bilhões – mas a prazo longo, de modo que os efeitos são diluídos. Mas parte da dívida interna é indexada ao dólar. Assim, quando o dólar fica mais caro, essa parte da dívida aumenta. Mas quanto? Se o dólar ficar em R$ 2,80, por exemplo, essa dívida aumenta menos de R$ 20 bilhões em um ano. É dinheiro, mas não torna mais complicada uma dívida total de R$ 650 bilhões. Mais importante. Embora indexados ao dólar, tais títulos da dívida interna, chamados cambiais, são emitidos e resgatáveis em reais. Ou seja, mesmo que não entre mais um único dólar na economia brasileira, os títulos da dívida interna continuam sendo normalmente pagos em reais. (É, por sinal, uma diferença do Brasil com a Argentina, cuja dívida é toda ela em dólares). Mas para saber se o Brasil está à beira do colapso, resta verificar se essa enorme dívida interna é manejável. A resposta é sim. Seu vencimento vem sendo alongado. Em 2001, foi preciso rolar R$ 280 bilhões, o que aconteceu normalmente. Para este ano, antes da recente confusão, o vencimento caiu para R$ 200 bilhões, mais da metade já renovada sem problemas. E finalmente, para 2003, também antes da atual confusão, estavam previstos vencimentos ainda menores, em torno de R$ 165 bilhões. Esses números dizem que a dívida vem sendo alongada. Ainda há poucos anos, a dívida vencia inteiramente a cada doze meses. Para o ano que vem, estava previsto o vencimento de 25% do total. Ou seja, se deixaria uma situação confortável para o próximo governo. Sobretudo, é preciso notar que o perfil do endividamento vem melhorando, ainda que o total da dívida federal tenha aumentado enormemente nos últimos cinco anos por causa da transferência das dívidas estaduais para o governo central, da incorporação dos “esqueletos” (dívidas antigas que não estavam contabilizadas), da capitalização de juros e da alta do dólar. Não é, de todo modo, um quadro de insolvência. Como, aliás, se vê no Relatório de Mercado. O pânico dos últimos dias no mercado financeiro é o pânico de que a dívida pública não seja paga. Olhando os números e o estado geral da economia brasileira, não existe a menor possibilidade de calote. Temos, pois, um pânico de mercado, que tem a ver com expectativas a respeito de um próximo governo. E pânico por política só acaba com política. Publicado em O Estado de S.Paulo, 24/06/02

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