A CRISE DOS PLANOS DE SAÚDE

. Olho na saúde das empresas   Imagine que a legislação, apoiada em decisões judiciais, determine que todos os carros novos sejam equipados com ar condicionado, direção hidráulica e câmbio automático, a preço, tabelado, de popular. Imagine mais: que outra legislação determine a colocação daqueles equipamentos nos carros em circulação, mediante um limitado aumento de preço, também tabelado. É mais ou menos o que está acontecendo com os planos de saúde privados. Rigorosamente controlados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e vigiados de perto pelas associações de consumidores e pelos promotores, esses planos – alguns funcionando há 40 anos – atendem nada menos que 38 milhões de pessoas. Considerando o grupo de maior faturamento e maior número de usuários, algo como mil empresas, gastaram em assistência, no ano passado, cerca de R$ 25 bilhões. Para comparar: o total dos gastos públicos com saúde no ano passado, dos governos federal, estaduais e municipais, chegou a R$ 46 bilhões. Planos de saúde, portanto, são muito mais do que complementares. E por isso mesmo, argumenta-se, por se tratar um bem inestimável, a vida, precisam ser controlados. Ao contrário do que ocorre com automóveis ou cervejas, não podem ser deixados ao sabor do livre mercado. Infelizmente, porém, há um ponto em comum entre a vida, os carros e as cervejas: têm preço e, no caso da saúde, cada vez mais caro. No mundo todo o setor público controla e faz a maior parte dos gastos com assistência à saúde. Isso não garante eficiência, sobretudo quando se politiza a questão. Politizar é pretender garantir saúde a todos sem que se defina qual o custo e quem vai pagar. É exatamente o que acontece no Brasil, neste momento. O setor de planos privados vive sua maior crise. As operadoras encontram-se numa delicada situação econômica-financeira, conforme demonstrou estudo recente da Capitolio Consulting, consultoria sediada em Brasília e especializada no setor. Todos os indicadores têm piorado ano a ano, como aqueles referentes à sinistralidade (quanto a empresa gasta com atendimento em proporção da receita). O limite da prudência é gastar 75 reais para cada 100 reais arrecadados com vendas de planos e mensalidades. No ano passado, as operadoras brasileiras exibiram sinistralidade de 80,5%. Algumas carteiras das principais seguradoras, Bradesco Saúde, Sul América e ItauSeg (Hospitaú), as mais antigas, perdem dinheiro. Gastam 140 reais em pagamentos para cada 100 de receita. Enquanto isso, o ministro da Saúde, Humberto Costa, define as operadoras como “gananciosas” e promete “enfrentá-las até as últimas consequências”. Usuários não estão satisfeitos, temem reajustes elevados nas mensalidades. Os médicos não estão satisfeitos e a ameaçam boicotes para obter melhor remuneração nos serviços prestados às operadoras. Hospitais, clínicas e laboratórios reclamam das pressões que sofrem das operadoras para reduzir custos. As operadoras reclamam que médicos, pacientes e hospitais pedem exames demais, só porque estão no plano. Ou seja, ninguém está satisfeito, há crise e a causa básica é uma só: uma disputa intra-setor por transferência de custos. Como as receitas são limitadas pela lei e pelo governo e como a demanda por serviços é crescente, os participantes disputam entre si para ver quem paga a conta. E o sistema como um todo se enfraquece. A rigor, os problemas começam na Constituição de 1988, que declarou a saúde um direito do indivíduo e um dever do Estado. Em consequência, criou-se o Sistema Único de Saúde para atender, em tese, a todos brasileiros, cuja contraprestação é o pagamento de impostos. Mas de lá para cá, dada a evidência de que o SUS não poderia atender a todos com eficiência, cresceu o número de brasileiros que procuraram as operadoras privadas, que se dividem, basicamente, em duas categorias. As empresas de medicina de grupo têm corpo clínico e hospitais próprios. Oferecem serviços diretos. As seguranças garantem o reembolso de despesas feitas pelos usuários. As duas maiores empresas do setor, por faturamento e número de usuários, são seguradoras, a Bradesco Saúde e a Sul América. Já aqui, convém notar que os brasileiros com planos de saúde estão pagando duas vezes pele direito à assistência. Pagam os impostos, que financiam o SUS, e mais as mensalidades, diretamente ou por meio das empresas em que trabalham. Em 1998, o então ministro da Saúde José Serra comandou o primeiro esforço de regulamentação do setor privado. A lei 9.656 definiu regras para o setor e criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que, entre outras funções, controla o reajuste das mensalidades. Começou aí o descasamento receitas/obrigações. A lei exigiu planos muito abrangentes, proibiu a distinção entre planos mais simples (com menos serviços e mais baratos) e mais complexos e também não distingue adequadamente entre as obrigações de pequenas e grandes empresas. As menores entraram rapidamente em dificuldades. Surgiu ainda um outro problema. Um artigo da nova legislação determinou suas normas, sobretudo o controle das mensalidades, valiam para os planos anteriores a janeiro de 1999 – os chamados planos antigos, contratados antes da vigência da lei 9.656, e que ainda hoje detêm a maior parte dos usuários (cerca de 22 milhões). Algumas operadoras entraram na Justiça contra esse dispositivo e, cinco anos depois, em agosto de 2003, obtiveram sentença favorável em última instância, no Supremo Tribunal Federal. Estavam livres do controle da ANS. A agência procurou a negociação e dela resultou o Programa de Incentivo à Adaptação dos Contratos (Piac). As operadoras se comprometeram a propor a seus usuários um processo de migração para novos planos, nos parâmetros da Lei 9.656. Isso estava em andamento, com problemas. A lei fixa condições de abrangência muito amplas, como se pode ver no quadro desta página, enviado por uma seguradora a seus clientes, exibindo as diferenças entre o plano antigo e o novo. Fica evidente que o plano novo tem custos muito mais elevados – é, portanto, necessariamente mais caro. A ANS aceitou reajustes e iniciou ampla campanha nacional incentivando os usuários a migrarem para os novos contratos. Até que uma liminar concedida pela Justiça Federal de Pernambuco suspendeu o Piac. Aí desandou tudo. As operadoras, considerando que não podiam mais esperar, enviaram a seus clientes aviso de reajuste das mensalidades dos planos antigos (com aumentos de até 80%, para cobrir defasagens de cinco anos, conforme alegaram). E algumas seguradoras ofereceram também a migração para plano novo, com mensalidade de até 135% mais caras. Diversas associações de consumidores obtiveram na justiça liminares suspendendo os reajustes e limitando-os a 11,75%, valor autorizado pela ANS para planos novos. A agência, que concordar com reajustes maiores, agora só aceita os 11,75%. A diretora de Fiscalização da ANS, Maria Stella Gregori, autuou várias empresas, dando-lhe prazo para defesa. Mas a posição da agência já está tomada. Em entrevista à rádio CBN, Gregori disse: “Autuei, agora as empresas vão apresentar sua defesa, depois eu vou multar . . .” Havia uma negociação em curso entre ANS e operadoras, suspensa no final de julho, com promessa de retomada. E assim está a confusão hoje: a migração e os reajustes dos planos antigos estão suspensos pela justiça de primeira instância, em vários estados, embora autorizados pela decisão do STF de agosto do ano passado. Os usuários estão em pânico, temendo tanto que os reajustes não caibam em seus orçamentos, quanto a eventual quebradeira de suas operadoras, especialmente as menores. Médicos, que chegam a ganhar a ridícula quantia de R$ 13,00 por consulta, pressionam as operadoras. E a ANS revela crescente hostilidade em relação às operadoras privadas, ameaçando-as com novas exigências. Quanto às operadoras, embora muitas tenham cometido abusos, é certo que a ampla maioria é formada por empresas idôneas, não raro com governança corporativa. Eis aqui a moral da história: tudo começa com a argumentação de que saúde é coisa muito séria para ser deixada por conta do mercado. E termina com uma magnífica demonstração de incompetência do governo regulador. É preciso uma ampla reforma do setor, mas certamente não na direção pensada pela atual ANS e pelo governo. Escrito para a revista Exame, edição 823, data de capa 04/08/2004

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