. DISTRIBUIR ESCASSEZ Seja a culpa da seca, da privatização ou da falta de privatização, o fato é que vai faltar energia nas casas, nas indústrias, nas fazendas. Trata-se, portanto, de organizar a escassez – e esse é o pior problema. Todos perdem, de modo que a disputa é para ver quem perde menos. Salvar as migalhas, não é propriamente uma questão edificante. A proposta da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) parece, à primeira vista, a saída menos traumática e mais justa. Quem economizar energia terá, é claro, o prejuízo dessa escassez. Quem não economizar sofrerá multas pesadas, em dinheiro. Sendo este prejuízo maior que o primeiro, todo consumidor terá assim um forte estímulo material para desligar os aparelhos e as máquinas. Eis um primeiro ponto a observar. O governo abandonou qualquer idéia de compromisso moral. Não vai pedir que todos se sacrifiquem em nome do bem comum. Vai estipular um regime de economia e meter a mão no bolso de quem não o cumprir. Isso dá a medida da gravidade da situação. O senhor e a senhora sabem como é, apelos de colaboração podem não funcionar especialmente nesses momentos em que o pessoal está de bronca com o governo e os políticos. Outro problema é saber se o sistema proposto pela Aneel é exequível. Muita gente do ramo acha que não é. A idéia é a seguinte. Cada consumidor – seja uma casa de família, uma fábrica, um shopping center, um supermercado, uma propriedade rural ou uma repartição pública – terá uma cota de consumo de energia. Para fixá-la, primeiro toma-se o consumo médio de um período (um a três meses) do ano passado; sobre esse número aplica-se uma redução e obtém-se a cota. Por exemplo, uma família consumiu 400 kW/h em maio do ano passado. Menos 21%, sobra uma cota mensal de 316 kW/h para junho próximo. Se a família gastar mais do que isso, começa a pagar multas que aumentam proporcionalmente ao tamanho e ao tempo de duração do excesso. O mesmo sistema vale para as indústrias, com fator de redução de 18%. E aí já aparece um problema complicado. A economia brasileira hoje produz em ritmo mais acelerado do que no ano passado, de modo que as fábricas estão trabalhando gastando mais energia. Uma planta que há doze meses consumia três mil kW/h pode estar hoje utilizando 3,5 mil. Aplicado o redutor sobre os três mil, essa unidade teria de cortar mais de um terço do seu consumo atual, com uma fortíssima redução na produção. Outro ponto a observar. Tomar um banho morno e rápido é um desconforto, mas não mata ninguém. Já um corte na produção industrial reduz o ritmo de crescimento do país. Mas há um problema prático, apontado pelo jornalista Paulo Ludmer, diretor executivo da Associação dos Grandes Consumidores de Energia: controlar o consumo das fábricas é muito mais fácil do que das famílias. Só em São Paulo, são seis milhões de residências. A distribuidora de energia não mede o consumo todos os meses. Utiliza estimativas. Decorrem daí duas dificuldades. Primeira, fica mais difícil calcular a cota. Segunda, não haveria como saber se a cota estaria sendo cumprida, pois as distribuidoras, hoje, não têm como fazer a medição mensalmente em todas as residências. Pode-se exigir que passem a fazer isso, para o que teriam de contratar mais pessoal. Custos maiores, portanto, em um momento em que, vingando o sistema de cotas, as empresas estarão perdendo dinheiro já que todos os consumidores estarão pagando contas menores. Aliás, as distribuidoras já estão pleiteando ressarcimento por perda de faturamento decorrente de política oficial da Aneel. Pretendem ou ficar com as multas ou aumentar as tarifas depois que a confusão passar. (Mesmo porque impor um corte no consumo e, ao mesmo tempo, aumentar a tarifa pode causar uma revolução). E por falar em perdas, governos estaduais, que encontraram uma grande fonte de receita no ICMS na conta de luz, obviamente também perderão dinheiro caso funcione o sistema de cotas. Logo, também reivindicam as multas. E os consumidores residenciais? Por que as multas não podem ser aplicadas em medidas que os beneficiem diretamente? Como notou Ludmer, ficam colocados aí problemas legais para o futuro. Pessoas e empresas poderão entrar na justiça, contra o governo, reclamando indenizações. E do jeito que os tribunais adoram espetar uma conta na viúva … Ou seja, todas as medidas precisam de base legal consistente. Por tudo isso, muita gente do setor acha que o sistema de cotas e multas, no Brasil de hoje, não pode funcionar. Se esse pessoal tem razão, a alternativa que sobra é a mais radical: cortes no fornecimento de energia por algumas horas ao dia. Aí não tem punição para quem esbanjar nem prêmio para quem economizar. Todos sofrerão por igual. Os problemas para o conforto das famílias e para a atividade econômica serão os mesmos, mas cortar o fornecimento é de administração mais simples e de resultados mais imediatos do que o complicado sistema de cotas e multas. A decisão cabe ao Conselho Nacional de Política Energética, um órgão de nível ministerial, que se reúne nesta semana. Além de todos os problemas técnicos, há, claro, aspectos políticos. Para o governo, o maior desgaste em termos de popularidade é tirar o banho quente das seis da tarde da classe média. Para a atividade econômica, entretanto, está claro que o prejuízo maior está na imposição de cortes maiores especialmente à indústria. Assim, se fizer a coisa certa, o governo terá ônus maior. Como se dizia na abertura, este é o pior problema, distribuir escassez e perdas.
A CRISE DE ENERGIA
- Post published:9 de abril de 2007
- Post category:Coluna publicada em O Globo
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