A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) é uma entidade de classe, que age como um sindicato de juízes. Já é meio esquisito, mas como a legislação não é clara, a categoria se associou e defende fortemente seus interesses específicos.
Muito mais esquisito, porém, é que essa associação se assuma como um tribunal constitucional, declarando que não aceita a reforma trabalhista e recomendando a seus associados que não a apliquem.
A reforma foi aprovada depois de um longo debate, seguindo todas as normas legais. Votada na Câmara dos Deputados e no Senado, sancionada pelo presidente Temer, a nova legislação vai entrar em vigor a partir de 11 de novembro próximo.
Ocorre que a Anamatra convocou uma jornada reunindo juízes, procuradores e auditores fiscais do trabalho, na qual aprovou 125 enunciados para, diz, orientar as decisões dos magistrados. Na verdade, os enunciados rejeitam todos os pontos principais da reforma e da também da lei de terceirização. Para a entidade, são inconstitucionais e os juízes do trabalho devem decidir os casos específicos com base nessa orientação e não no texto da lei.
Eis a insegurança jurídica. Uma empresa vai contratar um funcionário no dia 12 de novembro. Qual legislação deve considerar, a aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente ou os enunciados da Anamatra?
Dirão: a reforma tem força de lei, os enunciados não. Mas o sindicato dos juízes e seus associados entendem que os magistrados não são obrigados a seguir a “literalidade” da lei. Ou seja, que estão livres para interpretá-la conforme sua “livre convicção”, para buscar a “vontade concreta da lei” a partir das “balizas constitucionais e legais”.
Trata-se de uma confusão de palavras e conceitos. É claro que o juiz interpreta. A lei é regra geral, o juiz decide casos específicos da vida real, de modo que precisa mesmo interpretar e dizer qual lei e como se aplica em cada situação. Todo mundo está de acordo com isso.
O que o juiz não pode fazer é, supostamente em nome de sua convicção pessoal, simplesmente ignorar a legislação vigente e seguir uma outra, recomendada pela sua entidade de classe. É exatamente o que pretende a Anamatra.
Alega que a reforma trabalhista é inconstitucional. Mas existe uma corte para decidir isso – e é uma só, o Supremo Tribunal Federal. É lá, e somente lá, que a Anamatra deveria apresentar seu caso. E enquanto o STF não decide, vale a reforma aprovada pelo Congresso. Se não for assim, para que serviria o Congresso Nacional, o poder legislador? A regra é a independência dos poderes.
Há uma questão maior por trás desse debate: trata-se de um tipo de ideologia que domina boa parte do Judiciário brasileiro. Pode ser assim resumida: o juiz não está lá para aplicar a lei, mas para fazer justiça.
Pode parecer muito bonito, mas a ideia é falsa. A verdade é o contrário: fazer justiça é fazer respeitar a lei e os contratos. Não há como escapar disso sem gerar uma enorme insegurança, uma ampla fonte de injustiças e de autoritarismo.
Não faz muito tempo, critiquei aqui, até com ironia, uma decisão do STJ que impedia os lojistas de conceder desconto para pagamento a vista. Desembargadores me ligaram para dizer que também achavam a decisão ridícula, mas era o que determinava a lei – que, afinal, foi alterada.
Se a decisão não for com base na lei, será necessariamente subjetiva e baseada na ideologia do juiz. O contrário da civilização, do estado do direito, que é o império da lei.
Até a Anamatra sabe disso. Seus enunciados sustentam que não se deve seguir a “literalidade” da lei. Na verdade, recomendam que os juízes não sigam a “literalidade” de uma determinada lei – a reforma recém aprovada – e que sigam outras leis, as anteriores. Estão se dando o direito de dizer qual lei e qual não vale.
Aí não pode. Essa é uma escolha, sobre qual será lei, é prerrogativa política do parlamento, o poder popular, Imaginem que um ministro da Suprema Corte diga isso: não vou seguir a atual Constituição, vou seguir uma outra que acho mais justa. Seria caso de impeachment, não é mesmo?
A Anamatra não está causando apenas insegurança jurídica. É muito mais grave.