Diz o tribunal eleitoral que o importante é entregar as contas, não que elas estejam corretas
Suponha que a Receita Federal convoque você para explicar como pode ter comprado uma casa de R$ 100 mil, em dinheiro, se ganhou apenas R$ 50 mil no ano todo.
Você chega lá e diz: minha obrigação é fazer a declaração. Se bate ou não bate, se tem irregularidade ou não, é outro problema.
Mas faltam 50 mil para fechar as contas ? argumenta o fiscal.
E você: e daí? Não tem nada de mais. Isso é mero problema aritmético. O que importa é que eu cumpri meu dever de cidadão ao apresentar a declaração.
Não vai colar, não é mesmo?
Mas na Justiça Eleitoral cola. Se o cidadão, em sua campanha eleitoral, arrecadou 50 mil e gastou 100 mil, mas declarou tudo na prestação de contas ? está limpo. Mesmo que as contas tenham sido rejeitadas pela Justiça, ele pode tranquilamente candidatar-se na eleição seguinte.
Bem traduzida, essa foi a decisão tomada pelo Superior Tribunal Eleitoral na última quinta. Trata-se de uma mudança de rumos, pois a mesma corte havia decidido, em processo anterior, que contas não aprovadas configuravam uma ficha suja ? e com ficha suja ninguém podia se candidatar.
Mas um recurso endossado pelos principais partidos (PMDB, PSDB, DEM, PTB, PR, PSB, PP, PSD, PRTB, PV, PCdoB, PRP e PPS, portanto, situação e oposição no mesmo saco) argumentou que a lei eleitoral não exige contas corretas, mas apenas a apresentação das contas.
O TSE, por quatro votos a três, concordou. Ou seja, se as contas dizem que o candidato roubou, não tem nada de mais. Declarou, está limpo.
Tudo bem, mas quem não é candidato a nada deveria ter o mesmo direito. No nosso exemplo ali em cima, o que importa é a declaração de renda, não se está correta. Declarou, mesmo com indícios de grossa sonegação, está limpo.
Pode-se até dizer: sujeito honesto e corajoso, foi lá e declarou tudo. O que querem mais?
Estudantes também podem entrar na onda. O importante, dirão, é entregar a prova. Se ela contem erros ou não, é outro problema. Ou como diria o TSE, um ?mero? erro de matemática não pode desqualificar o candidato a uma vaga universitária.
A bolsa é para a escola
Os programas tipo Bolsa Família nasceram no âmbito do Banco Mundial – e aqui no Brasil com o trabalho de Cristovam Buarque – com base numa teoria precisa.
O primeiro ponto foi a análise, em diversos países, dos programas que entregavam bens e serviços diretamente às famílias pobres (alimentos, roupas, remédios, material escolar, instrumentos de trabalho etc). O governo comprava e distribuía.
Já viu. Havia problemas de eficiência e de corrupção. No primeiro caso, o governo comprava coisas que as famílias não queriam ou não precisavam. Em cima disso, a corrupção nas grandes compras. Tudo considerado, os técnicos do Banco Mundial calculavam que, do dinheiro programado, nem a metade chegava aos pobres. O resto se perdia na burocracia e na roubalheira.
Houve algumas tentativas, até bem sucedidas, de regionalizar as compras. Por exemplo, em vez do governo adquirir os pacotes de merenda escolar e despachá-los para as escolas, mandava-se o dinheiro para as associações de pais e professores, que faziam as compras localmente.
Mas para os programas de nível nacional, partiu-se da seguinte avaliação: as famílias não conseguem escapar da pobreza porque as crianças não frequentam a escolas. E não frequentam porque precisam trabalhar (na lavoura ou nas cidades, caso dos meninos) e cuidar dos outros irmãos, caso das meninas. Apostando que crianças com educação básica têm mais oportunidade de conseguir empregos bons, a idéia é clara: é preciso pagar para as famílias manterem as crianças na escola. Daí o nome oficial do programa: Transferência de Renda com Condicionalidade. O cartão de saque do dinheiro contra o boletim escolar.
Parece óbvio, mas houve forte debate. Muitos técnicos diziam que pais e mães gastariam o dinheiro em cachaça, cigarros, jogos e coisas para eles mesmos, usando os filhos apenas como fonte de renda. O bom senso sugeria o contrário. As pessoas não são idiotas nem perversas, sabem do que precisam. E os pobres também amam seus filhos.
Começou com programas experimentais na América Central e funcionou muito bem. Nos anos 90, a ideia começou a se espalhar pela América Latina. No Brasil, com o nome de Bolsa Escola (designação introduzida por Cristovam Buarque) apareceu em 1994, em Campinas, e logo depois em Brasília . Foi ampliado para nível nacional conforme projeto liderado por Ruth Cardoso. Surgiram ainda por aqui programas paralelos, como vale transporte e bolsa gás. Lula juntou tudo no Bolsa Família.
Não se trata, pois, de dar dinheiro aos pobres. Se fosse apenas isso, seria apenas uma caridade pública sem efeitos no combate duradouro à pobreza. Trata-se de colocar as crianças na escola, ou seja abrir a oportunidade para esses meninos e meninas escaparem da pobreza. O boletim é a parte essencial.
No México, o programa chama-se “Oportunidades” e o dinheiro entregue à família aumenta na medida em que a criança progride na escola. Vai até a universidade.
Em muitos lugares, há limitação no número de bolsas por família, com dois objetivos: estimular o controle da natalidade (ou reduzir o número de filhos) e desestimular a acomodação dos pais. Com dez filhos, dez bolsas, isso pode ocorrer.
Também se introduziram outras condicionalidades, como a frequência das mães nos postos de saúde, especialmente para o acompanhamento pré-natal e parto, e das crianças, para as vacinas. Ao boletim escolar acrescenta-se a carteirinha do ambulatório.
Resumindo, o programa funciona no curto prazo – ao dar um alívio imediato às famílias mais pobres – e no médio e longo prazos, com a escola.
Mas há aí uma tentação perversa. Como o programa funciona imediatamente, assim que a família recebe o primeiro cartão eletrônico, há um estimulo para que os políticos se empenhem em distribuir cada vez mais bolsas. É voto na veia. Ao mesmo tempo, esse viés populista desestimula a cobrança da condicionalidade. Pela regra, se as crianças desaparecem da escola ou não progridem, a bolsa deve ser cancelada. Mas isso pode tirar votos, logo, é melhor afrouxar os controles.
Resumindo: há o risco, sim, de um belo programa social se transformar numa prática populista. Quando os governantes começam a se orgulhar do crescente numero de bolsas distribuídas e nem se lembram de mostrar os resultados escolares e índices de saúde, a proposta já virou eleitoral.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 02 de julho de 2012