GOVERNO GASTA, JURO SOBE

. Se o governo gasta, o juro sobe      
O Brasil está no sexto ano de controle das contas públicas. Governo federal, governos estaduais e prefeituras têm feito superávits primários regulares e crescentes ? isso indicando que a cada ano fizeram economia necessária para pagar parte da despesa com juros. A dívida pública caiu em 2004.      
São números de sucesso. Paradoxalmente, porém, esse equilíbrio das contas está sob diversas ameaças. Gastos aumentam em toda parte e surge uma combinação de interesses políticos com o objetivo de relaxar a administração das contas públicas.        
Os prefeitos que encerraram seus mandatos em dezembro de 2004 foram os primeiros a administrar todos os quatro anos na vigência da Lei de Responsabilidade Fiscal, LRF, editada em maio de 2000. A lei estabelece limites rigorosos para o gasto e endividamento públicos e fixa penalidades variadas, de perda de direitos políticos a cadeia, para os que não a cumprirem. Pelos dados preliminares, parece que a maioria dos prefeitos passará no teste. Mas a LRF será efetivamente testada em relação àqueles que não a cumpriram. Entre os suspeitos de estar nesse grupo encontra-se um peixe grande, Marta Suplicy. Como será tratada, com o rigor da lei ou como a correligionária à qual tudo é permitido? Os primeiros movimentos indicam uma tentativa de acomodação. Em 27 de janeiro deste ano, na surdina, o governo Lula aproveitou uma Medida Provisória que tratava de pagamentos aos Estados exportadores, por conta da isenção de ICMS, a MP 237, para enfiar um artigo que regularizava um  financiamento tomado pela prefeitura de São Paulo na gestão de Marta Suplicy. Tudo passou desapercebido, a absolvição e o crime. Este havia sido denunciado pelo próprio Ministério da Fazenda que, em 27 de dezembro, cumprindo sua obrigação legal, havia comunicado ao Senado, por ofício, que a prefeitura paulistana havia tomado um empréstimo em desacordo com a LRF. Esse ofício permaneceu na gaveta até que o jornal O Estado de S.Paulo o divulgou, em 15 de março último. No dia seguinte, o Ministério confirmou o ofício e teve que entregar o truque da MP 237 para explicar que já estava tudo legalizado. Mais que isso, o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, apresentou uma interpretação da LRF favorável aos Estados e Municípios que não estão enquadrados nos limites de endividamento. Nessa visão, os governos  desenquadrados não poderão tomar dívida nova, mas poderão receber transferências voluntárias da União. E em vez de adequarem seus níveis de endividamento ano a ano, como parecia ser a interpretação dominante,  terão de mostrar a dívida enquadrada em 2016. Há uma seqüência de movimentos suspeitos nisso tudo, a começar pela tentativa de despistar, aliás parcialmente bem sucedida. A violação da LRF só foi descoberta quando a cena do crime já havia sido arrumada. É verdade que a história não terminou. A operação está sendo examinada pelo Senado e é possível que a MP 237 seja contestada no Supremo Tribunal Federal, assim como a interpretação benigna da LRF. Ocorre, porém, que essa interpretação interessa a Estados e Municípios administrados por adversários do PT. É o caso do governo paulista e, em especial, da prefeitura paulistana, que ganham tempo para enquadrar suas dívidas. Por outro lado, a manobra que legalizou retroativamente empréstimos irregulares, aparentemente sob medida para Marta Suplicy, beneficia outros prefeitos e ex-prefeitos, incluindo César Maia, conforme informação do Ministério da Fazenda. Existe um problema real em torno do cumprimento da LRF. A dívida de Estados e Municípios, negociada com a União, é corrigida pelo IGP, índice da Fundação Getúlio Vargas que sofre influência maior da taxa de câmbio. Esse índice disparou em 2002, com o dólar, de modo que mesmo governos estaduais e prefeituras que pagaram suas prestações regularmente estão hoje com dívidas maiores.     
Está na praça, há tempos, uma proposta para se mudar o indexador, mas que tem muitos inconvenientes. A LRF tem como objetivo central eliminar do cenário nacional a velha prática pela qual de tempos em tempos a União assumia as dívidas de estados e Municípios. Seus administradores, por isso, não precisavam se preocupar com o equilíbrio dos orçamentos. A LRF proíbe a União de financiar os entes federados. A mudança de indexador, ao reduzir as dívidas, pode ser interpretada como um novo financiamento, a volta do socorro federal, além de ser injusta com que fez tudo direito.     
A nova interpretação que o Tesouro deu à legislação é uma tentativa de driblar o impasse com menos prejuízo à LRF. É, de todo  modo, uma violação ao espírito da lei, assim como a manobra que legaliza financiamentos irregulares e que não poderiam ter sido tomados.     
Mas não se pode dizer que a LRF tornou-se letra morta. Seus dispositivos abrangem toda a administração financeira. No caso específico de Marta Suplicy, por exemplo, a ex-prefeita ainda poderá ser chamada a responder por gastos sem previsão e despesas irregularmente canceladas, se forem efetivamente apuradas.     
O outro problema é que aparecem por toda parte sinais de leniência fiscal. O festival maior está na Câmara dos Deputados que, na gestão Severino, aprovou medidas que ampliam a assistência a idosos ? pagamento de um salário mínimo a determinadas famílias ? que podem custar mais de R$ 20 bilhões por ano. Aprovou também, na reforma da Previdência, regras que podem elevar salários de delegados de polícia e auditores fiscais, mandando a conta para Estados e prefeituras.     
O Supremo Tribunal Federal manda projeto de Lei ao Congresso prevendo aumento dos vencimentos de seus juízes de R$ 19.500 para R$ 24.500, em dois anos, o que causará aumentos em cascata em todo o Judiciário federal e estadual.     
De seu lado, o governo Lula aumenta gastos. É da ideologia do PT. O partido sempre acreditou que a ação do governo faz milagres, tanto na promoção do desenvolvimento quanto no combate à pobreza e às desigualdades sociais. Isso exige um Estado moderno e eficiente, disse o ministro José Dirceu, explicando que decorria daí a necessidade de mais funcionários.     
Consequência: se o governo FHC, ao longo de oito anos, reduziu o número de funcionários ativos em 180 mil, o governo Lula aumentou de quase 50 mil em dois anos. São visões diferentes.     
Para o governo FHC, só deveriam ser funcionários públicos, concursados e com as vantagens desse sistema, os que exercessem diretamente as carreiras de Estado, como diplomatas e policiais federais. Os funcionários de apoio, auxiliares administrativos dessas funções, deveriam ser contratados pela CLT ou terceirizados.     
O governo Lula pensa o contrário, que todos devem ser funcionários públicos. Estes são muito mais caros e praticamente estáveis, porque se interrompeu a reforma administrativa que tratava, entre outras coisas, das regras de demissão. E como a reforma da previdência pública não está inteiramente aprovada, os novos contratados têm direito, por exemplo, a aposentadoria integral. Ou seja, cada novo contratado é uma despesa para a vida toda, uma despesa não redutível, que se soma aos crescentes gastos com custeio, em razão dos programas que se encavalam na administração federal.     
Na outra ponta está o Ministério da Fazenda, com seu firme compromisso de fazer o superávit primário para pagar juros e reduzir a dívida. Conseqüências inevitáveis: aumento de impostos e redução dos investimentos, estes os gastos não obrigatórios e que podem ser cortados.     
Já está acontecendo. Revista Exame, edição 839, data de capa 30/março/2005

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