LIBERAIS X ESQUERDISTAS NO GOV. LULA

. Cabo de guerra Então ficamos assim: o governo Lula começa pela direita na política econômica stricto sensu e pela esquerda em todo o resto. Não se trata, portanto, da repetição dos modelos recentes de governo socialista (ou trabalhista ou social-democrata), nos quais a política econômica é pró-mercado no sentido amplo, incluindo, por exemplo, privatizações e abertura comercial ao exterior. A administração Lula não vai privatizar nada, provavelmente nem os bancos estaduais que já estão federalizados e na fila de leilões de venda. A direção desses bancos, hoje nas mãos de administradores indicados pelo Banco Central, está sendo negociada com quadros do PT, que têm muitos planos para essas instituições, especialmente no apoio a programas sociais, e nem sequer cogitam a privatização. Eis aí um exemplo de tensões que nascerão dentro do modelo Lula. A privatização dos bancos estaduais foi um importante passo no saneamento das contas públicas. À exceção de um ou outro, como a Nossa Caixa de São Paulo, os bancos estaduais ainda não privatizados estão federalizados, sob gestão do BC, e sua venda final está prevista tanto nos contratos da União com os estados quanto no acordo com o FMI. Nesse caso, não é meta obrigatória, cujo descumprimento suspenderia as parcelas de financiamento, mas a medida está relacionada nas linhas gerais de política econômica. E aí, prevalece o braço da política econômica ou o outro, que arranha a austeridade fiscal e prevê o aumento da intervenção estatal na economia? Mas esse é apenas um dos tantos pontos a observar para se avaliar para qual lado pende o governo e quais seus possíveis resultados. Na verdade, é possível mesmo fazer uma check-list, a saber: 1. Cotação do dólar Trata-se da variável-chave, pois a fortíssima desvalorização do real é a causa original do maior problema verificado no ano passado, a inflação, e do segundo mais grave, o aumento da dívida pública e a piora da relação dívida/PIB. Portanto, o dólar não pode continuar se valorizando na velocidade de 2002. Seria explosivo. Também não pode desvalorizar-se excessivamente, pois uma forte valorização do real prejudicaria as exportações e o superávit no comércio externo, que foi o lado positivo do dólar caro. Para boa parte dos analistas, um dólar estável por algum tempo, pouco acima dos 3 reais, estaria muito bom. Depois, poderia seguir-se um período de suave desvalorização. 2. Entrada de dólares A taxa de câmbio depende, no essencial, da recuperação da confiança na economia brasileira. Com isso, não apenas os estrangeiros voltariam a trazer dinheiro para o país e a comprar títulos da dívida externa, com a conseqüente queda do risco Brasil, como bancos e empresas brasileiros voltariam a captar financiamentos no exterior, a juros razoáveis. Entrando mais dólares, cai a cotação da moeda e tudo começa a se equilibrar. Alguns bancos e empresas de primeira linha já estão lançando bônus no exterior. É preciso ficar de olho nesses movimentos. 3. Superávit do comércio externo Os resultados saem semanalmente. Os superávits precisam se manter pelo menos no mesmo nível do ano passado. Se crescerem, tanto melhor. 4. Contas públicas A variável-chave a acompanhar é a geração de superávit primário, que se obtém quando as receitas superam as despesas de custeio e investimento, excluídas, pois, as despesas financeiras. Assim, esse superávit primário é uma economia justamente para se pagar a conta de juros.Trata-se do principal critério de avaliação fixado no acordo com o FMI. Se as metas de superávit não forem cumpridas, o governo perde o direito de sacar as parcelas do empréstimo do FMI e perde confiança. Não é difícil acompanhar os resultados nessa área. São divulgados regularmente pela Secretaria do Tesouro do Ministério da Fazenda e pelo Banco Central. Mas há indicadores paralelos, sinais antecedentes, por assim dizer, nos quais se deve ficar de olho. Por exemplo, qualquer medida que facilite o aumento do gasto público, mesmo que seja para bons propósitos, como o Fome Zero ou o salário mínimo, deve ser examinada com zoom. Se não houver a receita equivalente, é golpe no superávit primário, péssimo sinal. Deve-se lembrar, ainda, que as estatais, os governos estaduais e as prefeituras também devem gerar superávit primário. Assim, qualquer medida que alivie os compromissos dos entes federados nos contratos de refinanciamento de dívida com a União pode ser vista como ameaça ao superávit primário. Entra aqui, por exemplo, o caso da privatização dos bancos estaduais já federalizados. Devolver esses bancos aos governos estaduais, entregá-los a quadros políticos do PT, é ameaça ao superávit e problema à vista com o FMI. Por outro lado, a manutenção rigorosa do superávit, nos termos do acordo com o FMI, proporcionará forte ganho de confiança na gestão da política econômica e na liderança do ministro da Fazenda, Antonio Palocci. 5. Receita Federal Como a redução do gasto público depende de reformas de longa tramitação no Congresso Nacional, a manutenção do superávit continua dependendo da capacidade do governo federal de continuar arrecadando com enorme competência, como foi na gestão do ex-secretário da Receita, Everardo Maciel. Eis um número a acompanhar: a arrecadação da Receita Federal deve ficar, na média, nos 20 bilhões de reais ao mês. 6. Inflação Não precisa despencar abruptamente, mas também não pode aumentar. O ponto a observar nos índices de preços é a relação entre os diversos itens. O normal é que alguns preços caiam, outros subam e outros, finalmente, fiquem estáveis. Quando todos, ou quase todos os preços estão em alta, é perigo à vista. A trajetória boa seria uma lenta e progressiva queda dos índices de inflação. 7. Juros Observar aqui o comportamento do Comitê de Política Monetária do Banco Central, o Copom. Só pode começar a derrubar juros quando o dólar e a inflação estiverem em baixa. 8. Encaminhamento ao Congresso da reforma da previdência Claro, não é para amanhã, mas é preciso que haja movimentos claros na direção dessa reforma. Reparem o leitor e a leitora que todos os pontos da lista a observar têm a ver com a tensão entre as duas linhas coexistentes no governo Lula. Em qualquer governo, em qualquer país, há uma tensão entre os que gastam e os que controlam o caixa. No caso do governo Lula, há um fator adicional: a tensão ideológica entre uma equipe econômica (incluindo o segundo escalão dos ministérios e do BC) que é amplamente pró-mercado, neoliberal, e a enorme maioria do governo Lula, que não guarda a menor crença no mercado. Ao contrário, confia apenas no poder do Estado e, especialmente, no Estado petista. O mercado, que vota todos os dias, estará de olho nesses embates e naqueles indicadores. Fique de olho também. O pior já passou As expectativas de crescimento da economia brasileira vinham caindo sistematicamente desde março último, mas essa deterioração cessou na rodada do Relatório de Mercado divulgado no dia 18 no Boletim Focus do Banco Central. As projeções de expansão do Produto Interno Bruto melhoraram para este e o próximo ano. Coisa pouca, é verdade, mas chamou a atenção a mudança da tendência. Aos números: em março, antes do início da campanha eleitoral, e quando tudo parecia tranquilo no país – na verdade, dizia-se que havia um excesso de otimismo no mercado financeiro – esperava-se crescimento de 2,4% para este ano e de 3,6% para 2003. De lá para cá, em linha com os demais indicadores, as projeções para o PIB só caíram, para chegar a 1,2% e 1,9%, respectivamente, no Relatório de Mercado fechado em 8 de novembro e disponível na página do BC no dia 11. Nos dados divulgados dia 18, a previsão para este ano foi a 1,22% e, para 2003, a 2%, a primeira variação positiva em 33 semanas. O Relatório de Mercado resume os cenários de mais de cem instituições financeiras e consultorias independentes, elaborados pelo Banco Central. Essa mais recente rodada mostrou ainda inflação em alta e contas externas com déficit ainda menor. Como juntar isso tudo? Um ponto importante está nas exportações, que desde setembro exibem crescimento real em relação ao ano passado. Dados analisados pelo BBV Banco, no boletim de 18 de novembro, indicam que o volume de exportações de produtos industrializados cresceu quase 12% entre junho e setembro deste ano. No período, a produção industrial cresceu apenas 2,6%, o que resulta em um crescimento modesto de 0,8% nas vendas internas – já que a exportação representa algo como 15% da produção industrial. Outros dados confirmam o aquecimento do setor exportador. Segundo um estudo da Fundação Getulio Vargas com um grupo de 67 empresas responsáveis por um terço das exportações brasileiras, a operação já alcançou 86% da capacidade instalada. Na área de bens intermediários, a atividade é ainda mais intensa. Empresas que exportam papel e celulose operam com 93,4% da capacidade. Na siderurgia, quase 90%. Bons sinais, mas é preciso olhar o reverso da medalha. Aparecem problemas e dúvidas, como aumentos de preço e ameaça de desabastecimento. O presidente do Sindicato da Indústria de Componentes Automotivos (Sindipeças), Paulo Butori, disse ao jornal Valor Econômico que os fornecedores estão jogando duro: ou a fábrica de autopeças paga mais caro por insumos como aço, borracha, vidros, alumínio, ou não leva. É que os fornecedores, comenta Butori, têm a alternativa da exportação. Outro setor aquecido é o de embalagens de papelão ondulado, um sinal importante. Se as empresas estão comprando embalagens, é porque estão vendendo. Segundo dados preliminares da Associação Brasileira de Papelão Ondulado, a expedição de caixas e acessórios em outubro (165,6 mil toneladas) foi 5,2% superior à de setembro e 5,6% superior ao de outubro de 2001. No acumulado deste ano, a alta é de 4,5%. Os preços também estão em alta. Somente no bimestre setembro/outubro, o reajuste do preço médio foi de 41,2%. Finalmente, o consumo de energia elétrica industrial cresceu 13% em setembro último, na comparação com o mesmo mês do ano passado – que não é uma boa base de comparação pois ainda se vivia sob efeito do racionamento. Mas incluindo todo o período janeiro/setembro, o consumo deste ano já é 1,2% superior ao de 2001, que teve ritmo forte no início do ano. Segundo o relatório da Eletrobrás, o consumo da indústria revela “recuperação lenta, mas firme, impulsionado notadamente pelas atividades ligadas à exportação”. O mesmo panorama – mais exportações e insumos caros – aparece na análise do presidente da Ford, Antonio Maciel. Para ele, a indústria automobilística deve fechar este ano com produção em torno de 1,5 milhão de unidades e exportação de 300 mil, esta rendendo algo como US$ 4 bilhões. E pagando mais caro pelos insumos: de junho até agora as embalagens subiram entre 50% e 80%; plástico, entre 35% e 50%; aço, 40%; e alumínio, 35%. Para 2003, Maciel espera um ambiente parecido, com preços ainda pressionados, mas com mais produção (podendo chegar a 1,8 milhão de veículos) e mais exportação (algo como 400 mil unidades). No médio prazo, o presidente da Ford brasileira acha que as exportações do setor podem dobrar nos próximos quatro anos – o que, aliás, seria uma espécie de presente ao governo de um presidente vindo justamente da indústria automobilística. Antonio Maciel assim define o próximo ano: a oportunidade está na exportação, o risco na inflação. Resume a opinião de muita gente nos meios econômicos. A exportação, claro, empurra o crescimento, mas moderadamente porque a economia brasileira ainda é muito fechada. As exportações representam cerca de 11% do PIB, de modo que uma vigorosa expansão de 10% nas vendas externas, em números redondos, acrescentaria apenas 1% no nível de crescimento econômico. No México, as exportações já representam 25% do PIB e no Chile, 30%. A propósito, esses são os dois países com os melhores desempenhos na América Latina, e ainda assim ambos estão crescendo no modesto ritmo de 2% anuais. Ou seja, a situação em toda a região não é brilhante. Nesse quadro, o crescimento esperado para o Brasil neste ano, de 1,22%, não faz tão feio, sobretudo se considerado que os outros não passaram pela eleição de um presidente de esquerda que moderou seu discurso apenas depois de iniciada a campanha eleitoral. Tudo considerado, há números indicando crescimento em alguns setores importantes da economia brasileira. A exportação cumpre seu papel. Já no mercado interno, segundo dados elaborados pelo BBV Banco, o setor de bens semiduráveis e não-duráveis (os de menor valor) cresceu apenas 0,2% nos últimos dez meses. E a produção de bens de capital e duráveis teve queda conjunta de 1,2% no mesmo período, mostrando a dificuldade dos setores que mais dependem do crédito – que encurtou e ficou mais caro. Por este ângulo, tudo que se pode comemorar é que a economia brasileira não entrou em recessão, o que não é pouca coisa diante dos choques externos e internos. E para 2003? A expectativa geral é de um ano parecido com este – com forte atividade voltada à exportação e mercado interno mais retraído – mas com crescimento geral um pouco mais acelerado. A variável inflação é crucial, mais exatamente, o modo como o novo governo lidará com “velha senhora”. Na verdade, a atuação do próximo governo é que determinará um ritmo mais ou menos rápido na economia. Já se verifica um aumento de confiança, sobretudo entre consumidores, em relação ao futuro. Se a administração Lula conseguir emplacar um choque de confiança logo de saída, então investimentos e consumo podem ganhar um impulso. Caso contrário, volta tudo para trás. Para resumir a conjuntura, tomamos emprestado, com uma pequena inversão, um achado do último comentário semanal do BBV Banco: “pior já passou . . . por enquanto”. Publicado na revista Exame, edição 783, data de capa 15/01/2003

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