SÍNDROME DE SÃO TOMÉ

. Perguntaram a Lula se ele poderia ou pretendia fazer algo para acalmar os mercados, que mostravam dólar em alta e bolsa em queda, isso no primeiro dia após o primeiro turno das eleições. Perguntaram ainda se o candidato do PT poderia antecipar a indicação dos nomes de sua equipe econômica, medida essa entendida como uma das que talvez acalmassem os mercados. Lula disse não e não. Ele concedia entrevista coletiva para comentar as eleições que deram ampla votação a ele e ao PT, mas insuficiente para resolver a parada. Assim, disse Lula, sua preocupação a partir daquele momento era ganhar os votos que lhe faltavam para conquistar a presidência da república. Acalmar os mercados, acrescentou, é tarefa do presidente atual, inclusive para dar tranqüilidade ao pleito no segundo turno. Conclusão, a volatilidade continua, pois a preocupação do mercado não é com o atual governo, do qual compra títulos desde que vençam antes de janeiro, mas com o próximo. É verdade que são duas possibilidades de próximo governo, o de Lula e o de José Serra. Neste último caso, sabe-se que Armínio Fraga continuaria na presidência do Banco Central, o que é ótima e tranqüilizadora notícia para os meios econômicos. Mas sem efeito prático enquanto os ativos eleitorais do tucano forem muito inferiores aos de Luiz Inácio Lula da Silva. O jogo, portanto, está feito. Tudo que Lula poderia fazer para atender os mercados já está feito, no entender do próprio candidato. Na mesma entrevista coletiva do último dia 7, ele chamou a atenção para a sua Carta ao Povo Brasileiro, divulgada em 22 de julho, na qual diz: “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. E ainda: “Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica . . .Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país”. Acrescente a isso a nota à imprensa na qual Lula disse que manterá o acordo com o FMI – e é tudo. A Carta tem quatro páginas nas quais, exceto as frases citadas acima, o candidato reitera sua proposta de mudança do modelo econômico e insiste que a crise financeira atual resulta exclusivamente de vulnerabilidades criadas pelo governo FHC. Mas isso era o dourado da pílula. O propósito central do documento era garantir que não haverá mudanças bruscas ou rupturas, que tudo será feito dentro da lei, em negociações, e que o superávit primário – critério essencial do acordo com o FMI – será mantido o tempo necessário para equilibrar a dívida pública. Serra, embora com seu discurso de mudança, também dá essas garantias, até reforçadas com a promessa de manter Fraga no BC. E se o tucano subir nas pesquisas, certamente o mercado reagirá positivamente. Dito de outro modo, o mercado acredita em Serra mas com Lula quer ver para crer. Quer ver, por exemplo, o presidente do BC de um futuro governo Lula já entrando em ação. Quer ver o ministro da Fazenda garantindo que tem mandato para fazer o superávit primário. E por que acredita em Serra antes de ver? Primeiro, porque todo mundo sabe que o tucano é fiscalista desde quando foi secretário do Planejamento do governo Montoro, em 1983. Também não há dúvida sobre seu compromisso com a inflação baixa. E quanto às suas divergências com a política econômica de FHC, a principal delas está superada desde janeiro de 1999, quando o real se desvalorizou. Há uma outra divergência associada a essa, mas que não assusta os meios econômicos. Sabe-se que Serra é favorável às chamadas políticas industriais ativas – em última instância, concessão de algum benefício público – para estimular exportações, substituir importações e defender a empresa aqui instalada. Lula também é. Mas, pelo passado, entende-se que Serra fará isso sem destruir as contas públicas e sem levar a um fechamento extremo do mercado local. Serra também não tem preconceitos contra controle de preços – tabelou os remédios, quando ministro da Saúde, dizendo ser um mercado imperfeito – mas também se entende, por ele e pelo pessoal que o cerca, que não acredita em amplo controle do mercado. Não Enfim, entende-se que um governo Serra será mais ativo e controlador do que o período FHC, mas sem voltar às ideologias esquerdistas dos anos 70. E o governo Lula? Até antes dos recentes documentos de moderação, como a Carta ao Povo Brasileiro, a verdade é que ele e seu pessoal pensavam justamente no nacional—desenvolvimentista dos anos 70, um regime fechado, com ampla intervenção do Estado em todos os setores da economia. Na verdade, um documento anterior à campanha, intitulado Um Outro Brasil é Possível e divulgado pelo Instituto de Cidadania, a ONG de Lula, propunha explicitamente um “neonacional-desenvolvimentismo”. Esse documento está hoje fora da campanha petista, assim como se esqueceu daquele outro intitulado “Ruptura Necessária”, aprovado em encontro da direção nacional do PT em dezembro de 2001 na reunião de Olinda – um texto radical. Na entrevista do último dia 7, Lula referiu-se a esse encontro como um dos marcos de sua campanha, mas foi interessante o modo como falou. Lembrou que a reunião estabeleceu diretrizes para o programa de governo e aprovou a política de alianças, que culminou com a escolha do senador e empresário José Alencar para a vice-presidência. Lula colocou ênfase na questão das alianças, não nas diretrizes, de resto abandonadas na feitura do feitura do programa de governo, não por acaso intitulado “Um Brasil para todos”. Imagina-se então nos meios econômicos a seguinte situação: um ambiente de stress no mercado financeiro transmitindo efeitos negativos para a economia real; um governo Lula, de um lado, sob pressão de suas bases tradicionais, como a CUT e sindicatos de funcionários públicos; de outro lado, sob a vigilância estreita dos mercados, obrigado a cumprir as restrições previstas no acordo com o FMI e pressionado a negociar a Alca. Como reagiriam Lula e seu pessoal? Ficariam firmes na nova ortodoxia ou voltariam às antigas idéias? Essas especulações não são de hoje. Não apareceram tão explícitas dado o turbilhão que foi o primeiro turno. Além da liderança de Lula, não se deve esquecer que os outros dois candidatos oposicionistas, Ciro Gomes e Anthony Garotinho, tiveram ou pareceram ter chance de tomar a segunda vaga de Serra. Eram três candidatos desconstruindo o governo FHC e um, Serra, tentando se equilibrar na “mudança da continuidade”. Por isso, não raro parecia que as propostas de Lula e Serra eram iguais. Agora, o jogo é mais direto e, sendo assim, as diferenças devem aparecer. Por exemplo, Serra deverá explicitar a ortodoxia fiscal-monetária, com a manutenção de Armínio Fraga. Lula ficará diante da dificuldade de defender ortodoxia semelhante, e colocar em risco sua condição de oposicionista, ou voltar um pouco às origens, arriscando perder votos do centro e assustando os mercados. Serra, de sua parte, ficará diante da vontade de surfar na grossa onda de mudança, e arriscar-se a ficar parecido com o favorito, ou defender mais a continuidade, num momento de desgastante crise financeira. O curioso é que a crise financeira é destrutiva para os dois. Para Serra, primeiro, porque pode roubar-lhe votos na medida em que alta do dólar aparece ao povo como falha da política econômica e, pois, culpa do governo e sua turma. Para Lula, que seria o beneficiado por esse fator, a crise financeira coloca seu governo sob enorme pressão, e estritas restrições, antes mesmo de tomar posse. E, entretanto, há meios de ambos escaparem disso. Na coletiva do último dia 7, quando perguntado sobre as inquietações do mercado, Lula comentou que o mercado também ficou nervoso quando Tony Blair se elegeu primeiro-ministro da Inglaterra, depois de anos de governo conservador. Verdade. O mercado tinha a mesma dúvida que mantém em relação a Lula: o líder de esquerda mudou de fato ou a mudança foi apenas para ganhar a eleição? Blair deu resposta eficaz. Comprometeu-se com a autonomia do Banco Central e foi a primeira coisa que fez tão logo eleito. Autonomia do BC é garantia de continuidade das regras básicas de política econômica, válidas para qualquer tipo de governo. Não quer dizer que os diretores do BC fazem o que bem entendem, mandando mais que o presidente da República. Significa que os diretores do BC têm mandato determinado para executar uma política e buscar objetivos definidos pelo governo eleito. Por exemplo, é o governo que fixa a meta de inflação, a ser cumprida pelo BC. Se isso existisse entre nós, não existiria hoje essa demanda por saber quem será o próximo presidente do Banco Central. Não apenas esse funcionário teria mandato fixo, como estaria seguindo política previamente definida e que, atenção, poderia ser alterada pelo governo seguinte, mediante determinados rituais institucionais. Já está no Congresso brasileiro uma emenda constitucional que, aprovada, permitiria, em seguida, a votação de um projeto de lei regulamentando a autonomia operacional do BC. Se esse processo fosse levado adiante já agora, com o apoio de PSDB e PT, boa parte do nervosismo do mercado estaria resolvida. E muito mais do que isso: a economia brasileira teria obtido um aperfeiçoamento institucional tão importante quanto o do quadro político, que permite hoje a eleição de um presidente de esquerda sem que ninguém sequer cogite da hipótese de uma crise institucional e/ou política. Mas se cogita e se vive instabilidade econômica. A institucionalização da política econômica, da qual faz parte a autonomia do BC, é o avanço que falta na democracia brasileira. Publicado na revista Exame, edição 777, data de capa 16/10/2002

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