. Tabelar remédios, uma idéia pobre Sim, o mercado é imperfeito, mas há maneiras mais criativas e mais eficientes de intervir Ninguém precisa entender de eletrônica para escolher um aparelho de televisão. Qualquer um sabe comparar funções e estabelecer a relação preço/benefício. Além disso, fabricar aparelhos de televisão não é propriamente um segredo, de modo que há muitos produtores competindo na praça para ganhar o consumidor. O mercado livre está em pleno funcionamento. Digamos agora que você tem asma e precisa de uma “bombinha” – um spray para de vez em quando borrifar os brônquios – muleta mais psicológica, mas que nem por isso alivia a dependência. Acabou-se o mercado livre. Você não tem informação suficiente para comparar entre as “bombinhas” oferecidas na farmácia. Não tem nem disposição de fazer isso, pois já se deu bem com um determinado medicamento.Muitas vezes, nem existe medicamento alternativo. Há poucos fabricantes, pois o setor é um oligopólio mundial (global, se quiserem). Assim, o consumidor/paciente precisa de um determinado produto, só aquele, e vai pagar o quanto pedirem. Logo, deve ter ficado contente quando soube que o governo federal tabelou o preço de medicamentos. O senso comum também aplaudiu: muito justo esse controle, pois este é um caso de mercado imperfeito e tem a ver com um valor ao mesmo tempo individual e universal, a saúde das pessoas. Mas até que ponto o tabelamento de preços é uma efetiva defesa? No curto prazo, há pouca dúvida. Simplesmente se bloqueiam aumentos de preços excessivos. Isso não é tudo, entretanto. O objetivo no caso não é apenas preço acessível. É muito mais: um mercado sempre abastecido com medicamentos eficazes, sem efeitos colaterais e que sejam o resultado do mais recente desenvolvimento científico e tecnológico. E aqui a coisa começa a se complicar. Descobrir um Prozac, um Viagra ou uma bombinha para asma que não provoque taquicardia, isso custa muito dinheiro. Não se trata apenas do custo de inventar aquele determinado medicamento, mas também de amortizar toda a pesquisa que não dá em nada e financiar os futuros estudos. Em consequência, o preço do medicamento terá de ser alto, pelo menos no lançamento. Se os governos pelo mundo afora derem de tabelar medicamentos de modo a impor preços baixos, os laboratórios simplesmente vão suspender as pesquisas. Assim, eis uma primeira conclusão: se os laboratórios não tiverem a certeza de que há mercado comprador, a preço remunerador, adeus novos lançamentos. Hoje, o mercado mundial justifica as pesquisas. Os laboratórios têm como ganhar dinheiro com os novos lançamentos, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Nesse quadro, se um determinado governo impõe preços baixos e tabelados, isso não bloqueia a pesquisa mundial mas os laboratórios provavelmente vão enviar a esse país apenas os medicamentos mais antigos e já com o custos amortizados. A colocação das descobertas mais recentes será adiada até que o produtor tenha certeza de que poderá vendê-los a preços remuneradores, sem risco de intervenções governamentais mudando as regras do jogo. Eis outro exemplo, que ajuda a entender a mesma história. Não deve ser tão difícil encontrar uma vacina para a malária, doença que atinge milhões de pessoas. Acontece que são pessoas pobres em países pobres, que não podem pagar o preço da pesquisa. Assim, sai um Viagra para os mais ricos e não a vacina para a malária. Não que o mal curado pela Viagra seja secundário, mas a malária mata muita gente todos os anos. A alternativa radical seria estatizar todo o setor de remédios. Mas não é preciso ir muito longe para desistir dessa tentação. O setor privado montou uma extraordinária máquina que tem colocado verdadeiros milagres no mercado. Os governos – e as universidades, públicas e particulares – são responsáveis pelas principais iniciativas de pesquisa básica. Mas boa parte desta e praticamente toda a decisiva operação tecnológica de transformação da ciência em um produto de consumo está com as companhias privadas globais. Mesmo na pesquisa, houve um caso recente muito significativo. Instituições dos governos americano e inglês estavam trabalhando no código genético. Aí surge a Celera, empresa privada americana, com ações na Nasdaq, e em poucos meses consegue resultados mais avançados do que os obtidos pelo projeto público em vários anos. Eis, portanto, o beco em que nos metemos. É preciso proteger o consumidor/paciente do excessivo poder de uma indústria oligopolizada, mas se não há mercado nem preço remunerador, ficaremos todos sem os milagres da cura. Em um amplo ensaio encomendado pela revista The Economist, publicado meses atrás, o economista americano Jeffrey Sachs propõe, entre outras coisas, que os governos e, principalmente, as instituições internacionais, criem demanda. Por exemplo: o Banco Mundial anuncia que comprará tantos milhões de doses anuais de vacina contra a malária, pagando, tantos dólares, num período de 15 anos. Isso não apenas viabilizaria a pesquisa como certamente estimularia a competição entre os diversos laboratórios na briga por um imenso mercado. O êxito na busca da vacina – ou seja lá qual medicamento definitivo – torna-se muito provável. Essa idéia reconhece a imperfeição do mercado mas cria um artifício de mercado, digamos assim, para driblar essa imperfeição. É verdade que seria preciso fazer alguns cálculos, mas quase com certeza o custo de aquisição do medicamento seria menor do que o gasto com tratamentos e a perda de homens e mulheres em plena atividade. Mesmo que não fosse, o gasto seria largamente justificado pelas vidas humanas poupadas. Na mesma linha, e voltando ao nosso caso, o governo precisa criar demanda para garantir um abastecimento regular de remédios de primeira linha a preços decentes. Um amplo programa de compras para hospitais públicos é parte disso, mas seria preciso ir mais longe. A idéia do governo comprar e distribuir remédios não é uma boa – acabaria surgindo uma imensa e ineficiente Remediobras. Talvez o melhor fosse distribuir vale-remédio para o próprio consumidor/paciente comprar. É preciso estimular a competição dos genéricos e por aí deveria ir, sempre na linha Sachs. O competente pessoal da Saúde e da Fazenda saberá como encontrar as saídas. O propósito deste artigo é apenas mostrar como o tabelamento de preços é uma idéia muito pobre para assunto tão importante. (Publicado em O Estado de S.Paulo, 07/01/2001)
TABELAMENTO DE PREÇOS DE REMÉDIOS
- Post published:9 de abril de 2007
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