. O funcionário e o militante
O Partido dos Trabalhadores vive não uma, mas três crises que se acumularam. A primeira começou ainda na campanha presidencial e decorre da mudança radical de pensamento na política econômica. As duas outras são consequência da chegada ao governo federal: a burocracia dominando o partido (e a administração pública) e a emergência da corrupção.
Nenhuma das três situações é inédita. Já aconteceram na vida de outros partidos socialistas, trabalhistas ou social-democratas, especialmente os europeus. A diferença é que, no caso do PT, as três crises acontecem ao mesmo tempo, o que dificulta a solução. Uma complica a outra.
A mudança no pensamento econômico já foi bastante examinada aqui. As outras duas, mais recentes, merecem a atenção de hoje. Não que corrupção e burocracia sejam acontecimentos recentes. A cada dia, se verifica que eram procedimentos antigos, praticados em administrações estaduais e municipais, assim como na gestão de outras entidades, sindicatos ou ONGs, controladas pelo PT. A novidade é a explosão das mazelas.
A burocratização do partido está na origem de tudo. Como todos os partidos socialistas, o PT nasceu de uma associação entre intelectuais e operários da vanguarda sindical, metalúrgicos no caso. Na fundação do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) foram intelectuais e gráficos.
Tais partidos nascem revolucionários, marxistas, pregando a destruição do capitalismo e a introdução do socialismo. Com o tempo, caminham mais ao centro, incorporam as classes médias, passam a pregar não a destruição, mas um capitalismo reformado, mais humano, seja lá o que isso signifique.
A essa mudança de doutrina corresponde uma mudança formal. O partido deixa de ser dos militantes e passa a ser controlado pelos quadros. Qual a diferença? Um militante tem profissão (operário, funcionário público, médico, dentista, advogado, professor), vive dela e participa do partido político movido a fé e esperança num mundo melhor. O quadro torna-se funcionário do partido ou das entidades e administrações controladas.
Tome-se o caso do próprio Lula, que começou no chão de fábrica como torneiro mecânico. Há muito tempo, porém, Lula só vê ferramentas em exposições. Ele tornou-se um quadro profissional, funcionário do partido, com salário e carteira assinada, e depois como presidente do Instituto da Cidadania, uma ONG associada.
É a mesma situação funcional de um Delúbio ou um Silvinho. Começaram no movimento sindical, agregaram-se ao PT e passaram a vida toda entre o partido, sindicato, centrais, entidades paralelas, ONGs e na administração pública. Paralelamente, muitos fazem carreira política, são vereadores, deputados, senadores.
Isso não é de hoje. Há tempos, por exemplo, quadros do PT ocupam postos em órgãos federais, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador, indicados pelos sindicatos. Igualmente, dominam diretorias dos fundos de pensão de estatais, participam de conselhos, sempre remunerados, muitos acumulando salários de dezenas de milhares de reais.
Formam assim uma burocracia partidária, sindical e política. É natural que assuma o controle do partido. Afinal, os quadros estão lá todo dia, não faltam às reuniões, desenham os estatutos, controlam o dinheiro, terminam mandando em tudo.
Esses quadros são muito parecidos com os sindicalistas europeus ou, se quiserem, com aqueles que se chamava aqui no Brasil de pelegos. Tornam-se membros do sistema, chegam a ocupar postos de conselheiros ou mesmo de dirigentes em grandes empresas, como na Volks alemã.
Claro que esses quadros mantêm a fé política. Mas com o tempo passam a ter outros interesses pessoais, profissionais e financeiros. Para um quadro, perder uma eleição é um desastre. O militante, aborrecido, volta para seu escritório, sua sala de aula. O quadro perde o emprego, precisa se recolocar no sistema. Ou seja, o sistema precisa ser grande, o partido precisa ser grande e ter muitas ramificações para acomodar a turma toda.
Por outro lado, e aqui começa a crise conseqüente, esses quadros são mais suscetíveis a cair em tentação. Geralmente pessoas de origem simples, de que elas se orgulham, começam a conviver com os privilégios do poder, tornam-se elites, cortejadas por outros que participam do poder ou precisam estar perto dele. Também manipulam dinheiro farto (do partido, das organizações, da ajuda externa, das campanhas eleitorais, dos governos de que participam).
E aí vai depender da pessoa. Muitos passam incólumes, outros não resistem e acabam misturando o dinheiro da causa com o pessoal. Tudo misturado, dá numa lambança monumental: uns caem no caixa dois porque, dizem, o partido precisa de finanças para enfrentar a burguesia, as elites; outros acabam achando que não tem nada demais aceitar benefícios pessoais (desde um jipe até emprego para a patroa, chegando finalmente no dinheiro vivo), espécie de ?prêmio justo? pelo sacrifício à causa.
Quando se dão conta, estão iguaizinhos às piores elites, na verdade, são integrantes delas. Mas, de novo, isso não é novidade.
Tome-se o caso da corrupção. O PSOE, depois de heróica resistência ao franquismo e de eficiente participação na democratização, chegou ao governo da Espanha em 1982e lá ficou até 1996, já com a doutrina reformista, não revolucionária. Pois vários quadros, em função de governo, foram apanhados superfaturando obras. Membros da direção do partido foram flagrados dando ?consultorias? a grandes empresas que ganhavam concorrências, num óbvio esquema de financiamento de campanha.
A diferença é que o governo do PSOE foi apanhado no final, quando ultrapassara os dez anos de poder, tendo já acumulado várias conquistas políticas, sociais e sobretudo econômicas, com a entrada na Espanha na União Européia.
O partido afundou, mas se refundou. Trocou os quadros dirigentes, se reorganizou e voltou ao governo nacional, mas só depois de nove anos na chuva.
De outro lado, o PSOE mudara seu doutrina econômica antes de chegar ao governo, assim como haviam feito os partidos Trabalhista inglês e Socialista francês.
No PT, foi tudo bagunçado. A política econômica foi definida e aplicada por Lula e sua cúpula, sem que as demais alas do partido fossem sequer avisadas de que se tratava de coisa séria. A corrupção apareceu muito cedo. Os quadros ocuparam o partido e depois o governo federal com uma voracidade de quem luta pela vida. E logo caíram no deslumbramento, cederam às tentações.
Vai ser difícil sair dessa e impossível sair inteiro. Publicado em O Estado de s.Paulo, 19 de setembro de 2005