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No cabelo, só gumex

O presidente Michel Temer saiu-se com esta: “Nós lamentavelmente no Brasil temos um certo desprezo pela Constituição”. Se fosse só pela Constituição, até que não haveria problema. Estaríamos respeitando as leis, decretos e portarias – regras que obedeceriam à letra e ao espírito da Constituição. Logo, esta, indiretamente, estaria sendo cumprida.

O presidente acha que é mais ou menos assim. Disse que a lei ordinária é apenas percebida, que um decreto do governo atrai muita atenção e que a portaria, essa sim, “é sempre obedecida”.

Digamos que o pessoal é mais atento às portarias, mas não por respeito e sim por conveniência. As portarias sempre tratam de assuntos específicos, que interessam diretamente às pessoas. Mas como no caso das outras normas, a tendência é arranjar um jeito de escapar da regra que desagrada ou atrapalha.

Nos tempos recentes, de crises, essa tendência intensificou-se. Chegou até o Supremo Tribunal Federal, quando a presidente da Corte, Cármen Lúcia, decidiu que o governo do Rio não precisaria cumprir nem a lei de responsabilidade fiscal nem contratos juridicamente perfeitos.

O caso se resume assim: o governo do Rio deve à União. Não pagou. Pela lei e pelos contratos, o governo federal tem não a opção, mas a obrigação de bloquear verbas destinadas ao Rio para cobrir o valor não pago.

         Alegou o governo do Rio que estava em situação calamitosa, de modo que tinha o direito de permanecer inadimplente e não sofrer qualquer consequência por isso. A ministra concordou.
         De maneira que ficamos assim: o governo do Rio quebrou porque gastou além da conta e, sobretudo, ilegalmente. Sim, isso mesmo, desrespeitou os limites de gastos fixados na lei de responsabilidade fiscal. Diz o governo atual que não podia prever a crise. Conversa. Podia, sim. Além do mais, continuou gastando por conta mesmo quando as receitas já caíam. Logo, é culpado.
         Ao dispensar o governo fluminense dos efeitos da inadimplência, a ministra caiu numa contradição insanável: uma administração que está em crise porque gastou e se endividou irresponsavelmente e de modo ilegal, fica autorizada a gastar mais e tomar novos empréstimos.
         Seria como perdoar o pessoal do caixa dois e autorizar novos caixas para as próximas eleições. Aliás, é o que deseja encaminhar o senador Edson Lobão, presidente da Comissão de Constituição e Justiça.
         E assim vai: policial militar, pela Constituição, não pode fazer greve. Faz e fica por isso mesmo. Não é só o caso do Espírito Santo. Bombeiros do Rio já fizeram greve, conseguiram o que queriam e foram anistiados.
         Mulheres de PMs ocupam a entrada dos quartéis. Ilegal. Qual seria a resposta legal? O governo do ES deveria ir aos tribunais, obter um mandado e retirar as mulheres. Havia risco de choques violentos? Nem isso. Ontem de manhã, apenas duas senhoras estavam sentadas em frente ao principal quartel de Vitória. E sabem qual a liminar obtida? As mulheres serão multadas.
         E mesmo que houvesse risco de resistência das mulheres, a ordem legal teria de ser cumprida. Assim como ocupações de escolas são ilegais e deveriam ser reprimidas, sempre com mandado legal. Mas alguém se lembra de algum ocupante, líder estudantil ou dos professores chamado a responder pelos seus atos nos tribunais?
         É até estranho que não tenham pipocado greves de PMs por toda a parte.
         PMs alegam que ganham mal e por isso têm o direito de desrespeitar as leis. Repararam que é a mesma lógica do governo do Rio? Como gastou mais do que tinha, tem o direito de pedir mais dinheiro a Brasília mesmo que o gasto tenha sido ilegal.
         Mas os PMs e outras categorias têm razão quando alegam que aparece dinheiro para os salários mais altos e para benefícios do pessoal de cima.
         Verdade. E com a mesma lógica de driblar a lei pelos interesses pessoais ou corporativos. Exemplo:  juízes, promotores, funcionários do alto escalão e políticos acham que têm todo o direito de ganhar salários e vantagens acima do teto legal.
         Aqui, aliás, é um desrespeito em série. Já foram editadas várias leis definindo o teto salarial. E que caíram quando os interessados arranjaram gambiarras para furar o limite. Quando isso acontece, em vez de se aplicar a lei e cortar vencimentos, os interessados criam outro teto, incorporando as gambiarras.
         Os romanos disseram bem: dura lex sed lex. Mas como lembram os mais antigos, aqui ficou assim: dura lex sed lex, no cabelo só gumex.
         De farra, claro. Mas uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, de 2014, mostrou que 81% dos entrevistados consideravam fácil desobedecer à lei, sendo por isso preferível recorrer ao jeitinho.
         Pois é.