Como a Argentina ficou pobre?

. Lições argentinas Primeiro, as de longo prazo: no início do século passado, a Argentina encontrava-se entre os 12 países mais ricos do mundo pelo critério de renda per capita. Na América Latina, era, de longe, o mais rico. Hoje, dependendo da desvalorização do peso, a renda argentina ainda poderá ser a maior entre os latinos, mas agora apenas um pouco superior à brasileira. Por aí já se tiram duas observações: o tamanho da riqueza então acumulada pela Argentina – levaram 100 anos para dilapidá-la! – e o quão meticuloso e persistente foi o trabalho de destruir um país. De fato, a Argentina é um caso especial na história econômica. Em geral, os países passam por ciclos de crescimento e de recessão, mas, sendo os primeiros mais longos, no passar dos anos a renda nacional cresce. A Argentina percorreu o caminho contrário: teve avanços e recuos, mas o longo prazo foi de empobrecimento. Como isso aconteceu? A Argentina ficou rica exportando carne e trigo para os países ricos da Europa. Os dois produtos foram, no início, um presente da Natureza que ali colocou os pampas, terra boa e fértil. Depois, eficientes técnicas de criação e cultivo, combinadas com um comércio internacional aberto, deram à Argentina a estratégica posição de líder no mercado essencial de alimentos – e alimentos caros. Ou seja, a Argentina era rica e moderna num mundo globalizado. Dos problemas que ocorreram depois, vários não foram culpa dos argentinos. Ao contrário do que se imaginava, os alimentos não se tornaram progressivamente mais escassos e, pois, mais caros. Teorias dominantes sustentavam que a população continuaria crescendo de modo exponencial, de modo que em pouco tempo faltaria comida, pois as terras férteis já estariam todas ocupadas. Duplo equívoco. O ritmo de crescimento populacional reduziu-se e continua caindo. O que aumentou exponencialmente foi a produção de alimentos, graças às novas tecnologias que permitiram a utilização de terras antes imprestáveis. Ou seja, as vantagens competitivas da Argentina esvaeceram, em um mundo já não favorável ao comércio internacional. Depois da Primeira Guerra, os países responderam à instabilidade internacional com políticas de fechamento e protecionismo, reduzindo a fonte de renda dos exportadores mundiais, como a Argentina. E então, a Argentina teria sido vítima inocente de um mundo hostil? A resposta é um imenso não. Os argentinos têm culpa, primeiro, por terem esbanjado o dinheiro da carne e do trigo. E, segundo, por não terem percebido as mudanças pelas quais passava o mundo. Gastaram o dinheiro com o propósito de criar um estado do bem-estar, à européia. Saiu um populismo à América Latina, de corrupção e privilégios a todos os setores, de trabalhadores a empresários, que conseguiam se apropriar de um pedaço do Estado, este, de sua vez, tirando sua renda dos exportadores e estendendo seus braços por toda a sociedade. Isso foi o peronismo, essencialmente, mas a idéia populista penetrou na alma nacional a tal ponto que mesmo os opositores do peronismo, como a União Cívica Radical, acabaram pensando do mesmo jeito: o Estado (a pátria, a nação, etc. etc,) resolve tudo, o capital internacional estraga tudo. Enquanto havia o dinheiro da carne e do trigo, tudo funcionou. Por que se preocupar se o país ganhava dinheiro com a exportação de alimentos tão essenciais? Sentados nisso, os argentinos não perceberam as mudanças na economia mundial, em particular não perceberam que riquezas naturais e comodities não eram mais essenciais. Capital e tecnologia é que faziam os milagres. Quando mixou o dinheiro da carne e do trigo, os argentinos continuaram gastando como se o dinheiro ali estivesse. E aconteceu o que sempre acontece quando se gasta o que não se tem: endividamento e inflação. A crise argentina vem tendo diversos episódios, mas os fatores principais, de fundo, são sempre esses, dívida pública e inflação. Na verdade, dívida, pois a inflação é uma consequência dela. Assim, independente da conjuntura do momento, a solução de longo prazo continua a mesma: o desmonte dos privilégios do Estado. Ou seja, e com o perdão das palavras, ajuste fiscal, ajuste fiscal, ajuste fiscal – isso para estabilizar e permitir a modernização da economia. Ajuste fiscal, lembremos, não é apenas cortar gastos e aumentar impostos. É mudar a estrutura do Estado, eliminando as fontes de privilégio e de corrupção. Em algum momento, a ficha tem de cair para os argentinos: a riqueza se foi, aquele país europeu do começo do século passado acabou, a classe média está pobre. Até este momento, a ficha não caiu. As atuais lideranças, peronistas, ainda acreditam que a causa de tudo não está no velho modelo de um século, mas no desvio dele aplicado nos dez anos do governo Carlos Menem. Tentam assim restabelecer a velha estrutura, atacando o FMI e o capital internacional (hoje o “imperialismo espanhol”). Se der certo, vão concluir a tragédia em grande estilo: já transformaram um país rico em pobre; caminham agora para fazê-lo miserável e dilacerado. Publicado em O Estado de S.Paulo, 21/01/2002

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